“Desde pequena, fui educada a olhar a Bíblia como um Texto Sagrado: Sagradas Escrituras em absoluto.
Desde pequena, fui educada a pensar que a Bíblia era o Texto Sagrado: a única Sagrada Escritura.
Desde pequena, fui educada a acreditar que a Bíblia era o Texto Normativo, o único Texto Normativo.
[…]
E neste mundo onde aportei, descobri que existem outros Textos Sagrados, tão Sagrados quanto o nosso. Textos Sagrados não escritos, textos Sagrados contados, cantados, mantidos na memória da tradição oral, mantidos na memória das lendas e dos mitos. Então, ao elaborar esta reflexão, achei importante beber no poço dos textos Sagrados indígenas e dos textos Sagrados cristãos. Beber das duas águas e partilhar com vocês seu sabor. “
Tea Frigerio
A citação da Irmã Tea Frigerio vai de encontro com a experiência que vivo de beber outras fontes Sagradas e partilhar essa mistura de sabor. A experiência com as escrituras hinduístas me trouxeram de volta à uma espiritualidade adormecida. O título desse texto é inspirado na obra do teólogo Paul Knitter, “Without Buddha I Could Not be a Christian” (Sem Buda eu não poderia ser cristão).
Meu tema de pesquisa de 2013-2015 foi no Movimento Hare Krishna Vrinda, como já escrevi em outros textos. E na curiosidade, tanto acadêmica quanto pessoal, li o famoso livro Bhagavad-Gita. Alvo de músicas, poemas, artes plásticas, inspiração de Mahatma Gandhi e de uma beleza poética infindável.
Vivendo uma longa “noite escura da alma”, o Bhagavad-Gita veio como um raio de luz, iluminando e dando novas perspectivas para a minha fé cristã. A primeira versão que li foi a tradução com comentários do Gandhi, que ele escreveu enquanto estava na prisão. E confesso que a leitura foi me gerando algo inexplicável. Quanto mais eu lia, mais eu encontrava a minha própria tradição religiosa. Quando mais eu lia, mais eu encontrava Cristo.
Um aspecto marcante na minha experiência foi a devoção e o amor dos devotos por Krishna. Lembro de conversar a primeira vez com uma monja devota, que hoje é uma grande amiga (minha querida Dina Dayal), que com toda paciência me deu um panorama da fé em Krishna. As palavras dela em relação a Krishna, às Escrituras Sagradas, ao serviço devocional eram como um néctar celestial. Um amor puro e divino.
No Bhagavad-Gita a Bhakti (devoção) é a meta suprema. É a maneira da qual alcançamos a liberação (moksha). E essa devoção é através do relacionamento pessoal com Krishna. Krishna é a Suprema Personalidade de Deus que auxilia seus devotos de uma maneira amorosa e próxima, como é visto no poema épico. Em uma das revelações de Krishna, Ele diz:
“Mas Eu é que sou o ritual, sou o sacrifício, a oferenda aos ancestrais, a erva medicinal, o canto transcendental. Sou a manteiga, o fogo e a oferenda. Eu sou o pai deste Universo, a mãe, o sustentáculo e o avô. Sou o objeto do conhecimento, o purificador e a sílaba oṁ. Também sou o Ṛg, o Sāma e o Yajur Vedas. Eu sou a meta, o sustentador, o senhor, a testemunha, a morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e a aniquilação, a base de tudo, o lugar onde se descansa e a semente eterna. Arjuna, Eu forneço calor e retenho e envio a chuva. Eu sou a imortalidade e sou também a morte personificada. Tanto o espírito quanto a matéria estão em Mim.” BG 9:16-19
Essas palavras tocavam meu coração e me davam esperança no caos. Após a leitura do Bhagavad-Gita, li também as Upanishads. E que incrível encontrar a diversas formas do Mistério da vida em lindos poemas, cânticos e contos. Aprender mais da Beleza e compreender, ainda que em uma centelha, a infinitude do Divino. Falava com meus colegas que com as Upanishads era possível brincar de “ache o versículo bíblico”.
Esse turbilhão de experiências (decepção, desconstrução, novas descobertas, leituras inusitadas) teve seu resultado em dois tópicos que descreverei:
1) o regresso a tradição cristã:
Costumo dizer para meus amigos e conhecidos: “Foi o hinduísmo – Krishna – que me trouxe de volta ao cristianismo”. Toda essa leitura da Gita e das Upanishads foram me trazendo de volta a minha tradição, pois eu encontrava em cada verso, cada mantra, cada prashad, o amor divino. Amor esse que conheci na tradição cristã na figura de Jesus Cristo, o verbo encarnado. O mistério da encarnação não se prende as categorias da religião institucional. Como bem lembra o filósofo Vattimo:
“A encarnação de Deus em Jesus Cristo [para Luigi Pareyson], longe de desmentir ou tornar ilegítimo os mitos das outras religiões, é uma sua, ainda que implícita, autorização. É justamente porque o Deus cristão se encarna em Jesus que se torna possível pensarmos Deus também sob a forma de um outro ser natural, como acontece em tantas mitologias não-cristãs” (VATTIMO, 2004, p. 40).
Através do caminho da meditação e recitação dos mantras conheci a meditação cristã, o que me aproximou ainda mais do cristianismo. Pude ler e reler os pais da igreja, livros sobre a oração do coração, até que encontrei o meu Guruji Dayananda, ou como é conhecido no Ocidente, Padre Bede Griffiths. Seu maravilhoso livro Rio de Compaixão – um comentário cristão ao Bhagavad-Gita. Que espetacular ter encontrado alguém que teve essa mesma sensação que eu! Lia lentamente o Bhagavad-Gita e os comentários do Padre Bede, como quem degusta seu prato preferido, saboreava cada palavra e reflexão a luz do cristianismo. Algo novo estava sendo gerado em mim.
2) o caminho do diálogo inter-religioso:
Em uma das muitas pesquisas que fiz para saber mais sobre o Padre Bede Griffiths, conheci um grupo que se reunia para compartilhar os mesmos ideias do Shantivanam (o mosteiro hindu-cristão no qual Griffiths dirigiu durante um período). Conhecida como a Sangha Shantivanam (ou “Oblatos Do Shantivanam Bede Dayananda”). Visitei para nunca mais deixar de ir. A definição de Sangha, segundo o Thich Nhat Hanh, é: “Uma comunidade de amigos praticando o Dharma juntos de forma a fazer acontecer e manter a consciência. A essência da Sangha é consciência, entendimento, aceitação, harmonia e amor.” Lá, ao meu entendimento, é a síntese do caminho do diálogo inter-religioso. Sem perder a identidade cristã-católica do mosteiro beneditino Shantivanam, consegue introduzir na sua liturgia diversos mantras e orações de outras tradições e uma leitura comparada da Bíblia e de outras Escrituras Sagradas. Evangélicos, protestantes, monges beneditinos, monges franciscanos, budistas, devotos de Krishna, ortodoxos, católicos, e outras pessoas de diferentes tradições, compartilhando a oração universal: Silêncio. A meditação.
A meditação é a ponte do diálogo inter-religioso. É o que une. O que gera compaixão, alteridade, profundidade. Somente a partir de uma experiência interior profunda que conseguimos nos abrir para o diálogo inter-religioso sem perder a própria identidade religiosa.
“O encontro das religiões tem uma indispensável dimensão experiencial e mística. Sem uma certa experiência que transcende o reino mental, sem um certo elemento místico na própria vida, não se pode esperar superar o particularismo da própria religiosidade, e menos ainda ampliá-la e aprofundá-la, ao ser defrontado com uma experiência humana diferente.” (PANNIKAR, 1996, p. 156)
Essa diferença não afastará o outro, mas sim enriquecerá a própria experiência do diálogo. Vivenciar o Espírito Divino, que é o sopro da vida, que está em tudo e em todos. Essa vivência do Espírito do diálogo “traduz a riqueza de um novo aprendizado: a relação com a diferença e a alteridade significa a “apropriação de outras possibilidades” e a “abertura à mútua transformação” (TEIXEIRA, 2010)
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Que possamos trilhar a senda do diálogo inter-religioso. Beber das águas das diversas revelações de Deus na humanidade. Aprender a contemplar a beleza da diversidade de do pluralismo. Compreender que Deus é apenas uma palavra que usamos para expressar o inexpressável.
“O pluralismo é um dom não só aceito mas desejado por Deus. Todas as pessoas devem ser respeitadas no seu direito inalienável de buscar a verdade em matéria religiosa, segundo os ditames de sua consciência. E as religiões devem ser respeitadas em sua dignidade singular e única.”(TEIXEIRA, 2010)
Bibliografia
FIGERIO, Tea. Leitura bíblica na Amazônia. 2007. Disponível em <http://www.abiblia.org/ver.php?id=1218> Acesso em <14 de jul de 2016>
PANIKKAR, Raimon ; La nuova innocenza 3. Sotto il Monte: Servitium, 1996, p, 156.
TEIXEIRA, Faustino. Teologia e Diálogo Inter-Religioso. Disponível em <http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br/2010/04/teologia-e-dialogo-inter-religioso.html> Acesso< 13 de jul de 2016>
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Parabéns pela sua experiência Angelica! Me identifiquei muito! Posso dizer que trilhei caminhos muito parecidos e a trilha nunca terminará rsrsrs Que saudades do Sangha do Bede aí em Sampa!! Aproveite a oportunidade de poder ir sempre! Abraço!
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Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.
João 14:6
Normalmente os Cristãos das tradições mais conservadoras usam esse versículo numa maneira exclusiva mas na verdade não existe nenhum versículo mais inclusivo como este. Toda tradição religiosa busca a conhecer a verdade, o caminho e a vida. Então o Cristo está presente aonde as pessoas buscam essas coisas. É um belo texto. Obrigado.
Um abraço.
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Amei o texto e eu consegui aprender o cristianismo em boa parte graças ao que me foi ensinado quando criança e adolescente pelo hinduísmo.
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