“O machado já está posto à raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo”. – Lucas 3:9
Imagine uma árvore nociva a saúde física, psicológica, cognitiva e emocional dos seres humanos dos quais se aproximam dela.Uma árvore que mata, que envenena a psique humana, que destrói as possibilidades e pluralidades da vida. Sim, essa árvore deve ser cortada, pois está causando muitos estragos por aí. Essa árvore é a teologia patriarcal que a grande maioria das igrejas cristãs vivem e pregam. A teologia feminista vem como um machado posto à raiz desse tipo de árvore. A religião cristã silenciou a voz das mulheres por séculos e séculos, impedindo a liberdade do corpo e o livre pensar. Por essa razão é necessário uma nova leitura da Bíblia, uma leitura mais abrangente e emancipadora.
“A Bíblia é nosso bem e nosso mal”, diria a teóloga e pastora Odja Barros. Pois ao mesmo tempo que a Bíblia pode ser um instrumento de empoderamento feminino, também pode ser um de opressão machista. E por isso é necessário se mover pela interpretação da Bíblia, e não apenas reproduzir o que as igrejas e líderes insistem em dizer. A interpretação bíblica é muito mais profunda que levar o texto ao pé da letra. A Bíblia, como bem exemplificou Érika Izquierdo, é como uma cebola: contém várias camadas, não apenas a superfície. A função da hermenêutica descodificar esse texto, descascar a cebola até chegar ao seu verdadeiro significado. É nesse ponto que se é necessário uma nova hermenêutica bíblica. Uma hermenêutica que vem dos corpos femininos, uma teologia do ser íntimo da mulher.
Para fazer teologia feminista é preciso lembrar que a religião cristã é uma religião de corpo, como diria teóloga Nancy Cardoso. É o corpo que morre e ressuscita. É o corpo que toca as chagas. É o corpo que chora. É o corpo que unge. É o corpo curado. É o corpo que se alegra. É o corpo que chora. É o corpo prostrado. O cristianismo é a dança dos corpos. É o Divino que se faz CORPO. A radicalidade da Encarnação faz com que o cristianismo se torne uma religião sensual. A união com o Sagrado se faz à mesa, é o corpo que come e bebe.
O evangelho – boas novas – do Encarnado é a libertação e desestabilização do poder em todas as esferas da sociedade. A sociedade patriarcal se vê ameaçada por tamanha abertura. A extraordinária liberdade de Jesus é o incômodo para os fundamentalistas da época, pois Jesus destrói a pirâmide de poder e hierarquia social e familiar: o mais rico é o mais pobre; o maior é o menor; o último é o primeiro, entre tantas outras figuras. Jesus desestabiliza a “família tradicional”.
É necessária uma compreensão mais profunda sobre a encarnação de Jesus: A encarnação é o projeto de tornar o Sagrado em Profano. É o Deus que esta ausente, é a kenósis, o esvaziamento de si, o Deus que se torna vulgar, se torna corpo, se torna gente. Gente humana. É essa humanidade, que é divina, é que é transbordante em liberdade. Jesus é o Sagrado que se torna o Profano, e assim sacraliza todas as coisas, sacraliza os corpos!
Que possamos cultivar em nossos corpos femininos uma teologia libertadora da opressão patriarcal, uma religiosidade mística e revolucionária e uma espiritualidade livre das correntes da teologia clássica patriarcal!
O machado está a disposição! Bom uso.
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O que busca a teologia feminista, por Ivoni Richter Reimer.
“• Visibilizar as histórias e os corpos de mulheres e de outras minorias qualitativas nas suas múltiplas relações.
• Desmascarar o silêncio e a ausência dessas minorias.
• Questionar as falas e normas androcêntrico-patriarcais sobre funções dessas minorias.
• Analisar as funções libertadoras e opressoras presentes nos textos e na história interpretativa.
• Perguntar pelos efeitos históricos do texto na construção de nossas identidades e relações.
• Conhecer e (re)construir imagens de Deus que ajudem nesse processo de desconstrução e reconstrução.
• Elaborar uma ética que afirma a vida como valor primeiro e absoluto, buscando construir novas relações de gênero, classe e etnia e afirmando a interdependência de todos os elementos da criação” (2010, p. 45)
Princípios da hermenêutica feminista da Bíblia:
“• Textos sagrados são testemunhos de fé vivida em determinado contexto histórico-cultural.
• Experiências de vida são referenciais para a leitura e compreensão de textos dentro de seus contextos, numa dinâmica de intra, inter e extratextualidade.
• É necessário resgatar a importância concreta dos nossos corpos históricos com todas as suas experiências.
• É preciso recuperar a importância e vitalidade do cotidiano ligado às esferas pública e privada em todas as suas dimensões sociais, culturais, afetivas, econômicas, políticas etc.
• É necessário romper com o silêncio sobre experiências de opressão e libertação/resistência vivenciadas nas relações de gênero (2010, p. 45-46)
*Breves reflexões inspiradas no workshop “Mulheres, Feminismos e Gênero”, realizado no Festival Reimaginar em parceria com as mulheres da Rede Fale. Agradecimentos: Nancy Cardoso, Odja Barros, Érika Izquierdo pelas palestras maravilhosas e Juliana Grabois por compartilhar suas anotações particulares.
Bibliografia:
NETO, Adair. Karim e sua catequese. 2016 <https://furoa.wordpress.com/2015/02/04/karim-e-sua-catequese/>
REIMER, Ivoni Richter. Para memória delas! Textos e interpretações na (re)construção de cristianismos originários. Revistas Estudos Teológicos São Leopoldo v. 50 n. 1 p. 41-53 jan./jun. 2010