A teologia rouca

Gritamos! Damos berros pela nossa liberdade. Pela liberdade de nossos corpos, de nossas mentes, do nosso ser. Gritamos como animais, berrando o “grito ancestral” de nossas companheiras, irmãs, mães, guerreiras. Gritamos porque lutamos. Lutamos por cada mulher que tem sua vida perdida e marcada pela violência machista da nossa cultura. Violência física, psicológica, sexual e espiritual. Somos violentadas diariamente nas músicas, novelas, filmes, livros, nas religiões. Nossos corpos são vendidos nas artes, na publicidade. E os mesmos corpos sofrem da repressão das igrejas, dos líderes, da religião controladora e catequética. Gritamos contra todo tipo de violência contra nós!

O grito, que vem das profundezas do nosso ser mulher, denuncia esse medo coletivo de simplesmente viver.  Gritamos, pois, “gritar é, em certa medida, libertar-se das frágeis barreiras que delimitam aquilo a que convencionamos chamar de ‘cultura’ em oposição à ‘natureza’ e ao que há de selvagem e indomável em nós” (STIGGER, 2016).  Gritamos, pois querem nos domesticar com suas regras comportamentais. Querem tirar a natureza de nós. Nos culpam! Culpam nossos corpos. Culpam Eva! Dizem que foi porque “pedimos”, que não era lugar e momento para estarmos. Colocam terços em nossos úteros! Gritamos, pois, com toda a nossa força para nos libertar dessas correntes sociais e religiosas!

Nossa teologia é rouca. Gritamos, sem parar, sem desistir, sem respirar, a nossa voz até se enfraquece. Mas insistem em não nos ouvir, na verdade, fingem que não nos ouvem! Não há espaço para nós nessa farsa teológica. Façamos, pois, a teologia na vida, da comunhão com as diferentes mulheres e diferentes lutas. Eles não querem nos ouvir, porém nós gritamos. Gritamos até que  a justiça – um mar de justiça – e a retidão – rios de retidão – se faça realidade entre nós!  (Amós 5:24). Tecemos fios, singelos fios, da teologia feminista, para que assim, um dia, se torne um grande tapete de paz e liberdade para as mulheres. Nancy Cardoso relembra que é tempo de zangar-se! E que essa inconformidade se torne um grito!

A teologia feminista é grito. É o grito do protesto que tem como objetivo não tornar normativa a violência que acomete mulheres de todo o mundo. É a denúncia da opressão social e religiosa que estão sob nossos corpos, impondo regras e normas de como ser, vestir, estar e se portar. Mas também é grito de prazer, do êxtase religioso, do fazer “teologia pôr prazer, porque é bom, porque liberta e dignifica a vida. Por isso nos ocuparmos da discussão sobre culpa e prazer, sexo e poder, sexualidade e política, produção e reprodução” (CARDOSO, 2012).  A teologia feminista é um grito, como já disse, mas é um grito profético!

Grito! E continuarei gritando por uma  teologia indecente, provocativa, sensual. Teologia que é a da terra, do povo, do corpo, da luta, do diálogo inter-religioso, da diversidade sexual, do direito do corpo da mulher. Por uma teologia da realidade, com pés e mãos na terra, que grita contra a injustiça e contra a violência, que chora com os que choram, e celebra com os que celebram. Uma teologia que busca da face de Deus no cuidado d@ próxim@, não nos grandes livros teológicos e nas igrejas despidas de espiritualidade. É na humanidade que foi estabelecido as tendas da comunhão, e  é nessa comunhão com o próximo que podemos experimentar o Divino.

Como diria a querida Ivone Gebara, a teologia feminista está dando pequenos passos ainda, porém, acreditamos que esses pequenos passos e gritos tem o poder de emancipar mulheres das violências acometidas diariamente. Há muito trabalho pela frente, ainda é só o começo de toda desconstrução social e teológica, porém, como já dizia Paulo:

De todos os lados somos pressionadas, mas não desanimadas; ficamos perplexas, mas não desesperadas; somos perseguidas, mas não abandonadas; abatidas, mas não destruídas. (II Co 4:9-9) […] Eu ainda acrescentaria: Roucas, mas não emudecidas! Pois continuamos e continuaremos a gritar!

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O último grito – Klaus Mitteldorf

 

“Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim:
parece que não sei quem é mais a criatura,
se eu ou o bicho.
E confundo-me toda.
Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados
que diante do bicho sou obrigada a assumir. (…)
Nada existe de mais difícil que entregar-se ao instante.
Esta dificuldade é dor humana.
É nossa.
Eu me entrego em palavras…”
(Clarice Lispector)

Bibliografia

CARDOSO, Nancy. “O perfume derramado das feministas” Disponível em:
http://blogformacaocristafortaleza.blogspot.com.br/2012/04/o-perfume-derramado-das-feministas.html

____________. “As palavras… se feitas carnes: Leitura feminista e critica dos fundamentalismos. Disponível em:
http://catolicas.org.br/wp-content/uploads/2014/08/publica%C3%A7%C3%A3o-palavras-feitas-carne.pdf

STIGGER, Verônica. “O útero do mundo: Clarice Lispector, a arte, a histeria”. Disponível em: http://mam.org.br/exposicao/o-utero-do-mundo/

Vídeo da palestra sobre a exposição “O útero do mundo”:
https://www.youtube.com/watch?v=bgQ3YpQ5gMg&feature=youtu.be

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Um pensamento sobre “A teologia rouca

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