Cidade. Cinza. Medo. A cidade que nos violenta todos os dias, o massacre que é diário. Não ande nessa rua. Não vá sozinha. Vai voltar de metrô, ônibus, trem? Cuidado com o horário. Não beba muito. Atravesse a rua. Mude a rota. Vai com essa roupa? Ande, veja, volte. O estado de atenção é o hábito. Uma moto. Ufa! Passou. Vou apertar o passo. Será que tem alguém atrás de mim? Esse carro já não passou por aqui? Devo estar imaginando. Ou não. Não saia de noite. Não é horário para estar fora de casa. Por que foi? Era ambiente? Devia estar na igreja. Vou orar. Por que isso aconteceu comigo? Onde estava Deus? Ah, mas o que será que ela fez? Deve ter merecido apanhar. Deus está do meu lado. Não foi assédio, era só uma cantada. Uma mão boba, nada mais. Foi só uma explosão de raiva. Desculpas. Violência. Verbal. Psicológica. Física. Sexual. Não faça isso! Gritos. Socorro! Cidade. Cinza. Medo.
A cidade e a igreja, patriarcais e machistas, oprimem o ser mulher em mundo público. Violências que se complementam. Domesticam nossos corpos. Silenciam nossas vozes. Desprezam o nosso pensar. Como mulheres somos encarceradas pela teologia que mortifica nossos desejos e pela cidade que nos objetiva como desejo. O discurso que a igreja tem é de justificar a violência contra a mulher, utilizando de argumentos ditos “bíblicos” e manipulando o senso de responsabilidade. A cultura de estupro é instaurada estruturalmente nas mentes por responsabilizar a mulher e a culpabilizar pela violência acometida. O discurso de violência contra as mulheres nas igrejas deve ser contestado e percebido como violência. A violência simbólica e discursiva é tão nociva quanto a violência física, pois é ela que alimenta até o ponto de se tornar algo físico.
Por que precisamos falar sobre discurso sobre as mulheres na igreja? Porque não são elas que falam. São os homens que insistem em dizer quem somos, o que podemos, o que devemos fazer. Onde podemos ir, quando, que horas, com que roupa. Mulher. Como a igreja colabora para a violência contra as mulheres? Quando reproduz um discurso como esse: Os discursos que as mulheres são inferiores aos homens ; que a mulher é apenas a ajudadora, pobre coitada, que é o pescoço ; que o ministério delas é o lar, filhos e marido ; que a mulher deve tomar cuidado com as roupas e corpo ; que ela não deve ensinar na igreja e seminários ; que a mulher deve cuidar do marido, que se é traída é porque ela não cuidou direito ; que a pior coisa do mundo é ser mulher divorciada ; que não se pode nem pensar na palavra sexo e muito menos na palavra aborto: isso é teologia da violência
Entretanto, o seguimento de Jesus é aquele que nos liberta das amarras e opressões sociais. Como mulheres e homens em busca pela justiça queremos construir igrejas comprometidas com as demandas da cidade. Um teólogo uma vez disse que uma das funções da igreja é o exorcismo, e como juventude vejo que temos que cumprir esse papel para:
*exorcizar o patriarcalismo e machismo
*exorcizar os políticos corruptos e o Estado
*exorcizar a violência de gênero
*exorcizar o medo de ir e vir
*exorcizar as devastações da Mãe Terra
*exorcizar o controle e culpa dos corpos
*exorcizar todo o discurso de ódio e violência
*exorcizar a desigualdade social
*exorcizar a geografia excludente
*exorcizar o racismo estrutural da cidade
Entre muitas outras demandas que necessitam ser exorcizadas das nossas cidades. E com os gritos expurgamos toda essa violência. A rouquidão pode se fazer presente, mas continuaremos a gritar pela liberdade de simplesmente ser mulher em sua plenitude de existência.
De todos os lados somos pressionadas, mas não desanimadas; ficamos perplexas, mas não desesperadas; somos perseguidas, mas não abandonadas; abatidas, mas não destruídas. (II Co 4:9-9) […] Eu ainda acrescentaria: Roucas, mas não emudecidas! Pois continuamos e continuaremos a gritar!
(Texto base para o Ato-Aula Pública #4: Para enfrentar a cidade (cárcere) cinza que ocorreu na cidade de São Paulo no dia 02-02-2017)