O senso comum se engana ao propagar a ideia de contemplação como inação. Ouso dizer o contrário, a contemplação requer um esforço gigantesco, pois é a ação de estar presente. Pode-se dizer que a contemplação possibilita um alargamento de visão da realidade. E essa nova visão que pode gerar mudanças concretas na realidade.
O que é contemplar? Contemplar é uma ação em relação a algo. A contemplação é um ato de interiorizar o objeto contemplado, é um encontro de realidades que produzem uma nova realidade. Realidades que se chocam, se misturam e se alteram. O estado de contemplação permite observar o invisível e nos abre para uma visão mais clara da vida e de suas ambiguidades. Se enganam aqueles que pensam que a contemplação é viver na exclusão e abstenção da realidade, pelo contrário, é viver a realidade em sua plenitude e responsabilidade.
Pode-se dizer que a sabedoria é ter a visão do todo, mas para se alcançar essa visão total da realidade é necessário que a água se aquiete para não mais ser turva. A contemplação é a água límpida, parada, que possibilita ver o que está por além da superfície. Lao Tsé uma vez perguntou “Você tem paciência para esperar a lama assentar e a água ficar limpa? ”. Quando a lama se assenta a visão da realidade se abre, podemos, então, enxergar com clareza o que antes estava oculto.
Para haver contemplação é necessário haver silêncio. Não apenas um silêncio externo, mas antes, um silêncio interior. O silêncio interior é uma semente, necessita de cuidado e cultivo para germinar no nosso ser. Além da língua, o silêncio reflete no corpo, na mente e no próprio silêncio. O silêncio do silêncio. Um dos principais exercícios para obter esse silêncio interior é o sentar, respirar e silenciar a mente. O silêncio interior não é algo a ser comprado, não é um pacote instantâneo de mudança, mas como disse anteriormente, é o cultivar. Esse cultivo requer muito trabalho, paciência e dedicação.
Nesses tempos nefastos permanecer em estado contemplativo parece ser uma contradição, pois bem, ao meu ver é, na verdade, um protesto e tanto! A mídia nos bombardeia freneticamente com diversos tipos de linguagem, que torna nossas mentes confusas de tanta informação banal, e que não nos permite um espaço de clareza de mente e discernimento da realidade. Para a lama se assentar é preciso parar. É preciso cultivar o silêncio, pois ele nos permite ver o que é verdade e o que é mentira.
O silêncio é uma potência criativa para a revolução e emancipação da sociedade. O silêncio é o útero da mudança. Cultivar o silêncio é gestar mudança. Em primeiro lugar, a nossa própria mudança. A lama que se assenta, se assenta primeiro em nós. Vemos assim, talvez pela primeira vez, quem realmente somos. A autoconsciência permite ver o que deve ser mudado em nós, quais são as nossas contradições, complicações e é um caminho para uma reconciliação com nós mesmos. E apenas quando estamos reconciliados com o nosso próprio ser é que conseguimos nos reconciliar com o nosso próximo.
Ao cultivar o silêncio cultivamos nossos gritos. Silêncio e contemplação não têm ligação com a passividade, mas com uma ação verdadeiramente transformadora. Os gritos que são cultivados no nosso silêncio são aqueles que denunciam todos os aspectos de injustiça, desigualdade, racismo e preconceitos. Com o silêncio observamos mais profundamente as raízes das injustiças, as estruturas de poder e coerção e as manipulações presentes em todas as esferas da vida. O silêncio não é o calar, o abster-se da vida, mas antes é o que possibilita a transformação da sociedade através de uma clareza de realidade e luta. Se desesperar diante uma situação de caos não soluciona o problema, o silêncio e contemplação permitem olhar para o mesmo problema com uma visão diferente. E através dessa visão límpida da realidade procurar novas formas de luta e soluções para os problemas vigentes.
Em um mundo de intensos barulhos, o silêncio é revolucionário. Honestamente, não acredito em uma revolução sem contemplação. Estou com Tolstói quando ele diz que sem a mudança no interior não haverá uma revolução verdadeira, é a mudança do olhar que move a mudança do mundo. O olhar é um ato de escolha, um ato político. A contemplação permite olharmos o todo, as coisas boas, e igualmente as ruins, por isso que é uma chave na transformação social e individual de cada um.
A contemplação que tem o fim em si mesma, esquecendo o mundo, é alienação. Quando a contemplação (meditação e silêncio) se distancia da realidade ela acaba mantendo todas as injustiças vigentes. Logo, não gera transformação, mas reproduz a violência. O silêncio não silencia as pessoas quando o que elas mais necessitam é gritar, mas antes, é um gerador de forças e sustentação para a luta.
As disciplinas contemplativas não são uma fuga à realidade, ou pelo menos não deveriam ser, mas são, o que podemos dizer, o verdadeiro despertar para a realidade. É para agir na vida concreta que despertamos, não para viver em um estado anestésico e ilusório. A meditação nos leva do irreal para o real, das trevas para a luz, como diria os famosos ditos indianos. A realidade, por mais dura que seja, é a única coisa que temos e é pela transformação dessa realidade caótica que devemos lutar e permanecer despertos. A construção de uma nova realidade requer a sensibilidade de pensar novos modelos e estilos de vida. Deixando de lado os barulhos externos, podemos pensar, criar, gerar vida, cultivar o amor, alteridade e respeito.