O labirinto é um símbolo arquétipo que suscita diversas interpretações e inspirações. O labirinto é uma construção feita para a perdição, é uma multiplicidade de caminhos que dissolve a todos. “Labirinto, pura geometria que protege e ao mesmo tempo aprisiona, avisa e esconde o Minotauro. Contraditoriamente é a arma que deram ao monstro contra suas vítimas” [1]. Sua arquitetura possui inúmeros corredores tortuosos que parecem não ter começo nem fim.[2]
Borges diz que “um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim”. O autor entende e valoriza o imaginário labiríntico enquanto símbolo da perplexidade da humanidade diante dos mistérios da vida. Borges transmite essa sensação com perfeição em sua obra. Uma explosão textual que confunde e gera múltiplas bifurcações e becos sem saídas. Bachelard compreende o labirinto como um “desnorteamento de um viajante que não encontra seu caminho nas veredas de um campo, o embaraço de um visitante perdido numa grande cidade parecem fornecer matéria emotiva de todas as angústias do labirinto…”[3]
“Narrativa, labirinto no tempo, em que não se pode perder o fio. O que impede a narrativa de ser perfeito labirinto é ter um ponto de partida e um ponto de chegada. Mas o labirinto possui também uma entrada e uma saída. Ponto de partida e entrada, ponde de chegada e saída, que podem ser os mesmos.”[6]
O processo de leitura é um labirinto, uma arena na qual o leitor e autor participam em um jogo de imaginação. Ou seja, o autor constrói labirintos textuais, oculta fatos, dá caminhos sem saídas, instiga a imaginação, desafia o leitor a expandir a rede de sua imaginação.[7] Para Iser, o fato do leitor estar estabelecido entre os tempos do passado, presente e futuro o texto se torna um potencial multiplicador de conexões[8].
Os labirintos do texto sagrado
O texto sagrado, ou texto da religião, é fruto da cultura. São diversas manifestações religiosas por todo o mundo, diversos ritos, símbolos, sistema e textos. As diferenças não estão apenas entre religiões distintas, mas dentro mesmo de cada tradição religiosa e cada interpretação do texto sagrado. São vozes e pensamentos diferentes acerca da mesma religião, do mesmo texto sagrado, como isso é possível?
É possível dizer que texto sagrado é um labirinto, como leitores podemos andar em diversos rumos e intepretações. É possível jogar com o texto e contra o texto, brincar e criar novas mensagens, produzir novas informações. A teologia, seja de qual for a tradição, tem essa tarefa, jogar com o dispositivo textual. Por vezes o texto trai seu leitor, oculta fatos, é ambíguo, deixa arestas, por vezes quem trai é o leitor, que tenta buscar a essência do texto que talvez não exista, já que é a experiência com o texto que produzirá o sentido. Se o texto sagrado é um labirinto, qual é o centro dele? Talvez alguns possam dizer que nele se encontre Deus, outros um vazio. Mas o caminho a ser trilhado e a multiplicidade de escolhas é que deixa a jornada textual interessante.
Para ler o texto sagrado é necessário de duas codificações, em primeiro lugar pela língua natural e em segundo lugar pelas exigências de um outro sistema, no caso, o religioso, que possui uma linguagem própria daqueles que pertencem a tradição. “Esta dupla codificação de qualquer mensagem lhe amplia ainda mais o potencial de criação de novas mensagens”[10]. Dessa forma o texto da religião obtém uma estrutura “sofisticada, duplamente codificada e semioticamente heterogênea”[11]
“O ato da leitura coloca lado a lado dois protagonistas que se defrontam: o texto e o leitor. De um lado temos o texto trazendo o mundo de valores e o horizonte de expectativas do autor, implícito nas estratégias textuais, inserido no contexto sócio-cultural, com um repertório enriquecido por intertextos, referências, ideologias que se organizam numa estrutura de comunicação. Do outro lado o leitor, indiscreto, questionador, procurando por respostas. No primeiro momento tendo para auxiliá-lo a sua intuição, mas logo a seguir, utilizando-se da investigação e da reflexão que lhe permitem o adentramento da investigação, a compreensão das tensões interiores, que interagem na complexa organização textual. De início, uma sensação de estranhamento, uma assimetria entre o texto e o leitor, que embora não seja determinada de antemão, vai lhe permitir múltiplas possibilidades de compreensão.”[12]
“Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam”[13]. O texto sagrado é aquele que é possível vários futuros, passados presentes. O tempo é rachado ao meio, é transcendido. Criam-se novas mensagens, novos tempos. É potencializado os diversos jogos interpretativos, a leitura é a brincadeira entre concretude e fluidez: “É concreto pois o leitor tem que tomar novas atitudes diante do texto no processo de leitura, mas é fluído pois essas novas atitudes forçam modificações no processo. A leitura, portanto, é um acontecimento, e a realidade é constituída de acontecimentos”[14] . O acontecimento da leitura é único, é uma experiência própria. “A impossibilidade da experiência alheia faz do texto uma experiência plural.”[15].
“O texto tanto revela como esconde”[16]. Sendo assim, o texto sagrado deixa espaços vazios. Esses vazios são preenchidos pelo leitor e suas projeções, pois então, “o leitor nunca poderá retirar do texto a certeza explícita de que a sua interpretação, ou a sua compreensão, seja a mais correta ou verdadeira.”[17]. Dessa maneira,
“a leitura define-se como um processo dinâmico relacional, que possibilita diversos acessos ao texto, colocado sempre em uma nova perspectiva e presentificando uma configuração, um modelo organizado que é a situação global do texto. Este se constitui, ao mesmo tempo, como uma unidade e como uma multiplicidade: a unidade do “todo organizado” e a multiplicidade das variáveis que são os diferentes reflexos das relações do leitor, ocupando os “brancos”, os vazios do texto. Em suma, a leitura é o desdobramento do texto sobre o modelo de um processo de realização, determinando o real como “aquilo que ele se torna” no decurso da leitura. A relação texto/leitor – CIRCUITO DA LEITURA – desdobra-se enquanto processo de constantes realizações de significados, a cada vez produzidos e modificados pelo próprio leitor.” [18]
O labirinto do texto sagrado é a polissemia do texto. Não existe um único caminho de leitura, mas múltiplos. Quem defende a leitura a partir de apenas um viés não compreende o processo de leitura e a experiência fluída do texto. O espaço e tempo do texto são distintos do leitor, a troca, negociação, adaptação, complementos que o leitor faz modifica o texto para torna-lo relevante a seu tempo. Um texto sagrado não continua sagrado se não se adapta as diversas leituras dos leitores. A diversidade interpretativa de uma tradição religiosa ou texto sagrado mostra a multiplicidade desse labirinto textual, espacial e temporal.
O texto sagrado brinca com o seu leitor, joga com ele, o desafia, mistura realidade, ficção, devoção em um só parágrafo, faz com o que o leitor se decida, tome rumos entre esse jardim interpretativo, escolha que caminho seguir. O não-dito do texto sagrado é tão importante quando o dito. A revelação e a ocultação são de igual importância.
“A atividade básica do leitor reside pois na constituição de sentido, estimulada pelo texto, que advém da conexão dos seus elementos constitutivos, das articulações e da necessidade de uma combinação, responsável pela coesão do texto, através do preenchimento de seus vazios, e de seus brancos”[19]
O texto comunica e cria novas mensagens, também adquire memória e personalidade. O processo de leitura de um texto contém ruídos, compreensões e incompreensões. Talvez esteja aí a beleza dos textos sagrados! Não compreender o texto, se perder em seus labirintos, brincar com os caminhos, admitir a magnitude do texto-labirinto.
[1] DOURADO, 1974, p.5
[2] BULFINCH, 2001, p. 191
[3] BACHELARD, 1990, p. 161
[4] BORGES, 1969, p. 79.
[5] DOURADO, 1974, p. 8.
[6] Ibid., p.8.
[7] ISER, 1974, p. 280.
[8] Ibid., p. 283.
[9] BORGES, 1969, p. 79.
[10] NOGUEIRA, 2012, p. 19.
[11] Ibid., p. 19.
[12] FLORY, 1997, p. 30.
[13] BORGES, 1969, p. 79.
[14] NOGUEIRA, 2015, p. 131
[15] FLORY, 1997, p.32.
[16] JOSGRILBERG, 2012, p. 45
[17] FLORY, 1997, p. 32.
[18] Ibid., p. 33-34.
[19] FLORY, 1997, p. 34.
Bibliografia
BACHELARD. Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes: 1990.
BORGES, J. L. O jardim dos caminhos que se bifurcam In: . Ficções. Trad. de Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1969.
___________. Obras completas. vol. 1. São Paulo: Globo, 1998.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da Mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim Junior. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Trad. de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1989.
DOURADO, Autran. Proposições sobre o labirinto. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 20, p. 5-12, jul.1974.
FLORY, Suely Fadul Villibor. O leitor e o labirinto. São Paulo: Arte & Ciência, 1997.
ISER, Wolfgang. “The Reading Process: A Phenomenological Approach.” The Implied Reader: Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett. Baltimore, MD: Johns Hopkins UP, 1974.
GONZÁLEZ, Rayco. ¿Cómo se analiza un concepto en la semiótica de la cultura? Un caso concreto: La sospecha. Actas del 2º Congreso Nacional sobre Metodología de la Investigación en Comunicación, 2003.
JOSGRILBERG, Rui de Souza. Hermenêutica fenomenológica e a tematização do sagrado. In NOGUEIRA, Paulo (org). Linguagens da religião: Desafios, métodos e conceitos centrais. São Paulo: Paulinas, 2012.
NOGUEIRA, Paulo. Religião e ficcionalidade: modos de as linguagens religiosas versarem sobre o mundo. In NOGUEIRA, Paulo (org) Religião e linguagem: abordagens teóricas interdisciplinares. São Paulo: Paulus, 2015.
_______________. Religião como texto: contribuições da semiótica da cultura. In NOGUEIRA, Paulo (org). Linguagens da religião: Desafios, métodos e conceitos centrais. São Paulo: Paulinas, 2012.
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