“Aprender a ver: acostumar os olhos à quietude, à paciência, a aguardar atentamente as coisas; protelar os juízos, aprender a circundar e envolver o caso singular por todos os lados.” Friedrich Nietzsche [1]
No livro O Crepúsculo dos Ídolos o filósofo Nietzsche aponta três tarefas de aprendizagem: aprender a ver, a pensar e a falar e escrever. Me atentarei a primeira das tarefas, o aprender a ver. A espiritualidade está entrelaçada com o aprendizado da visão. “Olhai os lírios do campo”, disse o mestre nazareno, mas raros aqueles que conseguem ver. Vivemos em uma sociedade de um excesso de imagens, informações, de hiperatenção. O olhar está habituado a esse excesso e não consegue mais parar e contemplar. A ansiedade não nos permite ver o óbvio. Não temos mais uma atenção profunda, porque nossa sociedade nos impele a fazer milhares de coisas ao mesmo tempo. Não sabemos mais nos concentrar e mergulhar profundamente em algo, pois nossa atenção é dividida entre diversas demandas. Segundo o coreano Byung-Chul Han diz que a hiperatenção é “essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos.”[2]. Não, não vemos mais os pássaros e muito menos os lírios, nossas preocupações cegaram nossos olhos, já cansados das multitarefas da vida.
E quando não vemos as coisas, agimos por impensadamente, repetimos o mesmo, não criamos. Nietzsche aponta que a primeira preparação para a espiritualidade é “não reagir imediatamente a um estímulo, mas saber acolher os instintos que entravam e isolam”[3]. Os tempos que vivemos e a realidade política e social do Brasil nos impelem a ação, porém, se não conseguirmos vislumbrar a contemporaneidade complexa que estamos vivendo apenas repetiremos coisas que já não fazem mais sentido. “Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente”[4]
Compreender o que se passa com a contemporaneidade requer um exercício de afastamento. O filósofo italiano Giorgio Agamben diz que aquele/aquela que vê a realidade é uma pessoa contemporânea, e para isso ele define como “aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”[5], “quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue distinguir a parte da sombra, sua intima obscuridade”[6].
O desespero não possibilita uma visão ampla, as luzes do século cegam a compreensão de uma realidade complexa. Há uma necessidade da contemplação, da quietude, como Lao Tsé uma vez perguntou “Você tem paciência para esperar a lama assentar e a água ficar limpa?”. A água não está limpa, estamos a vendo lamacenta pelas inúmeras injustiças que tem ocorrido no nosso país e no mundo. Não estamos esperando a água se acalmar em nós para podermos criar novas possibilidades de ser no mundo enquanto sociedade. “Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá para lá e não traz nada a se manifestar”[7]. Ser contemporâneo é ter um olhar centrado e compenetrado nas sombras.
“Por isso os contemporâneos são raros. E por isso ser contemporâneo, é antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não só de manter fixo o olhar na escuridão da época, mas também de perceber nessa escuridão uma luz que, dirigida até nós, afasta-se infinitamente de nós. Ou ainda? Ser pontual a um compromisso que só podemos faltar” [8]
Ter o olhar contemplativo é estar aberto a outras formas de se ver, a outras possibilidades de construir um presente e estar atento as nuances das crises que estamos passando. “A atividade pura nada mais faz do que prolongar o que já existe”[9]. A hiperatividade acometeu a todos os setores da vida como o trabalho, a vida religiosa e a vida de militância. Nos tornamos tão atarefados que assim como um animal apenas agimos e não mais refletimos nossas ações. Toda reflexão exige uma pausa, um tempo a sós, pensar, em uma vita activa o parar e pensar é visto como perda de tempo.
O pensar requer o ver, o contemplar. E “o pensamento seria a mais ativa atividade, superando todas as outras atividades quanto à pura atuação”. Pensar novos mundos, novas possibilidades de fazer política, se ser sociedade, de ser no mundo, de construir novos caminhos. [10]Hannah Arendt escreve no último capítulo de Vita Activa as seguintes palavras:
“Aqueles que estão familiarizados com a experiência do pensamento dificilmente deixarão de concordar com o provérbio de Cato […]: ‘Jamais se é tão ativo como quando, visto do exterior, aparentemente nada se faz, jamais se está menos só do que quando se está só na solidão consigo mesmo”[11]
Voltamos ao início do texto que inicio com a frase do Nietzsche. Aprender a ver. Eis que faço o convite! Um convite para a contemplação, para ver as coisas miúdas que correm pelo chão, o sopro do vento, a cor dos girassóis. Deixar os olhos lentos, descansados. Desabituar a vista do bombardeio de informações que nos deixam desorientados, que esse é o objetivo. Desorientar para agirmos da maneira já esperada. É preciso repousar e se reorientar. Se reorientar não para o mesmo sentido, mas para novos, para criar nossos sentidos, novos horizontes. É preciso aprender a ver.
[1] NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, p. 24. In https://veele.files.wordpress.com/2010/02/crepusculo-dos-idolos.pdf
[2] HAN, BYUNG-CHUL. Sociedade do cansaço. 2 edição ampliada. Petrópolis: Ed. Vozes, 2017, p. 33
[3] NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, p. 24. Ed. Sabotagem.
[4] HAN, 2017, p. 34.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Nudez. São Paulo: Autêntica, 2014, p.26
[6] Ibid., p. 26
[7] HAN, 2017, p. 37.
[8] AGAMBEN, 2014, p.27
[9] HAN, 2017, P. 53
[10] Ibid., p. 48.
[11] Ibid., p. 48-49