Entre–diálogos: inter-religiosidade e gênero

[angelicatostes]

Iniciarei essa breve reflexão com uma fala do antropólogo David Le Breton

“Percorrendo a mesma floresta, indivíduos diferentes não são sensíveis aos mesmos dados. Existe a floresta do coletor de champignons, do passeante, do fugitivo; floresta do índio, do caçador, do guarda-florestal ou do caçados ilegal, a dos apaixonados, dos extraviados, dos ornitólogos; a floresta igualmente dos animais ou da árvore, a do dia e da noite. Mil florestas na mesma, mil verdades de um mesmo mistério que se esquiva e que jamais se dá senão em fragmentos. Não existe verdade da floresta, mas uma infinidade de percepções a seu respeito segundo ângulos de aproximação, de expectativa de pertenças sociais e culturais” (LE BRETON, 2016, p.12)

A experiência religiosa é a floresta que costura os sentidos transcendentes da vida. Cada pessoa pisa na religião com seu corpo e a percebe de seu modo particular. Com a globalização e trocas culturais o pluralismo religioso aumentou gradativamente. É preciso de novos parâmetros para estudar os fenômenos religiosos da atualidade, pois noções como identidade fixa estão sendo flexibilizados para um novo tipo de sujeito religioso. “Nossa era global possibilita seja criações culturais, seja a remodelação da identidade e dos relacionamentos religiosos, seja a diversificação interna de tradições religiosas” (PUI-LAN, 2015, p. 20).

Em um mundo plural é necessário que haja diálogo – e muito. Se tratando do âmbito religioso as temáticas como diálogo inter-religioso e interfé são importantíssimas para a criação de novas relações humanas. Para a teóloga Kwok Pui-Lan a expressão “interfé” se dá de maneira mais ampla, pois indica” que as conversações e interações estão acontecendo entre pessoas que pertencem a credos, e não entre religiões em si, entre religiões como sistemas de crenças e práticas” (2015, p. 21). Quando saímos do ethos institucional e passamos para a complexidade da vida e as interações humanas a dinâmica do diálogo interfé se dá de uma maneira orgânica e entrelaçada. Alguns pontos são importantes para ressaltar nesse processo, como por exemplo as vozes marginais que não são ouvidas no diálogo inter-religioso institucional. “O futuro do diálogo interfé deve incluir aquelas vozes marginalizadas que não têm sido convidadas à mesa” (PUI-LAN, 2015, p. 8). Outro ponto importante são as diversas identidades desses indivíduos que se abrem para o diálogo interfé. A partir desses questionamentos pensaremos como é possível a construção da religião como potência de transformação social-política-cultural.

Diálogo para quem?

O diálogo inter-religioso não é um diálogo entre o cristianismo e outras religiões, mas é um encontro entre indivíduos que possuem fé viva (PUI-LAN, 2015, p. 25). É preciso que haja o questionamento sobre para quem estamos dialogando. O colonialismo impera inclusive nas temáticas do diálogo. “O diálogo interfé se beneficiaria das intuições de estudos pós-coloniais, que questionam como o eu e o outro, o centro e a periferia, o dominador cultural e o marginalizado foram construídos” (PUI-LAN, 2015, p. 32-33).

Quando pensamos em diálogo inter-religioso (ou interfé) para quem estamos falando? De quem estamos falando? Pelas as aparências, o diálogo inter-religioso é conduzido por homens e pelos homens. As grandes imagens dos encontros são homens, líderes religiosos, com suas vestes litúrgicas, propagando solidariedade e respeito das diferentes crenças. Isso também acontece no mundo acadêmico e teológico: as grandes publicações, volumes, artigos, são predominantemente masculinos. Mas, como destaca a teóloga Catherine Cornille, não é nada surpreendente. Pois, de longe a liderança da maioria das religiões continua sendo predominantemente masculina, portanto, é esperado que as mulheres estejam ausentes ou sub-representadas nos oficiais diálogos inter-religiosos (CORNILLE, 2013, p. 1). Isso sem contar com a hegemonia cristã e branca dos encontros institucionais de diálogo.

Vozes como a de Kwok Pui-Lan são de grande importância para abrir novos horizontes de pensamento e ação. Kwok Pui Lan nasceu em 1952 na cidade de Hong Kong. Ela se converteu ao anglicanismo ainda adolescente e se tornou uma teóloga feminista. Se doutorou em Harvard e recebeu diversos prêmios na área. Possui influencia internacional e atua como professora de Teologia Cristã e Espiritualidade na Episcopal Divinity School, em Cambridge, Massachusetts.

A teóloga encarna sua própria teologia, que é tecida pelo corpo de mulher chinesa, cristã, feminista e pós-colonial. Entende que a teologia e hermenêutica é feita a partir das experiências individuais e coletivas. Essa diversidade é celebrada como a integralidade da teologia, ela diz que “ a mulher cristã asiática consegue responder a pergunta de Jesus “quem vocês dizem que eu sou?”, a partir das próprias experiências e circunstâncias” (PUI-LAN, 97). A integralidade da teologia se faz presente quando leva em conta a vida e da voz as experiências dos que são vulneráveis em comparação aos poderosos. Os poderosos da teologia ainda insistem em fazer uma teologia colonial, patriarcal e ocidental e Kwok Pui Lan é a voz profética que vem denunciar esse tipo de atrocidade em um mundo plural e com diversas etnias.

Kwok Pui-lan representa uma forma contemporânea de fazer teologia no contexto global, incorporando sua experiência de duas etnias teológicas muito diferentes – Ocidental e Asiática,  com críticas feministas e pós-coloniais. Essa integração é evidente em sua escolha de fontes teológicas e é ilustrada em sua concepção de Cristo. Sua metodologia é histórica, dialógica e diaspórica. Sua visão de Deus é orgânica. (WADE, 2012)

A teologia feminista ocidental é deficitária com a temática do diálogo inter-religioso. Mas é importante e necessário pensar em como a teologia feminista pode contribuir para diálogo inter-religioso entre mulheres?  A teóloga Rosemary Ruether entenque que primeiramente é “promovendo a plenitude da humanidade da mulher” (RUETHER,2013, p. 12). A mulher não é vista como um ser humano pleno, muito menos como a imagem e semelhança do Deus cristão. Logo não pode ser a representação da divindade na terra. Então, Ruether propõe um “princípio profético” contra a forma patriarcal e subjugadora da mulher. O princípio profético não é algo marginalizado na Bíblia, mas sim algo que é um ponto central na fé bíblica. A denúncia das injustiças da fé e a renovação da visão (RUETHER. 2013, p. 12). Ao recuperar a plenitude da mulher no espaço religioso ela ganha uma nova força e voz nas estruturas patriarcais. E não apenas no cristianismo e judaísmo, mas também oferece elementos para a quebra de diversos patriarcalismos institucionalizados pelas religiões. Para ela “a teologia feminista é um discurso global e inter-religioso” (RUETHER, 2013, p. 11).

Riffat Hassan representa o islamismo e sua batalha para uma compreensão exegética igualitária e feminista dos textos do Alcorão. Judith Plaskow é a judia feminista que questiona os textos sagrados do Judaísmo e se pergunta: onde estão as mulheres na Torah? Para um budismo feminista temos Rita Gross que diz “O darma é tanto masculino como feminino” (GROSS, 1993, p. 207). As representantes das religiões que matriz africana estão as sociólogas Oyeronke Oyewumi, que trabalha com a religião Yoruba, que conclui que não existia gênero no pré-colonialismo; e Ifi Amadiume, que alega que na África pré-colonial o matriarcalismo e patriarcalismo coexistiam e se complementavam.  O Irã é representado pela Nima Nahigbi que trabalha com a temática do colonialismo e feminismo. E por fim, a Ásia é representada por Anna Loomba e Ritty Lukose, que editaram e publicaram em 2012 um livro sobre os feminismos do Sul da Ásia (Índia, Paquistão, Sri Lanka, Kashmir e Bangladesh).

Entretanto, como Pui-lan nos alerta é preciso que as teólogas cristãs ocidentais não cometam o erro colonialista com as mulheres de outras religiões com o discurso de “salvação” (Islã e as mulheres), para acontecer de maneira profunda esse diálogo interfé entre mulheres é necessário saber que há sim um discurso de poder, “porque mulheres de credos diferentes não entram no diálogo em pé de igualdade” (PUI-LAN, 2015, p. 38).  Outro ponto de destaque é a apropriação indevida, como utilizar de rezas, rituais de povos tradicionais sem compreender a profundidade, mas apenas para se mostrar inclusivo. “A mera inclusão de algumas vozes simbólicas, sem reconsiderar fundamentalmente as pressuposições e os esquemas epistemológicos atuantes não é verdadeira diversidade” (PUI-LAN, 2015, p. 52-53). Pui-Lan ressalta 3 motivos a respeito da apropriação, a seguir

a)A negação: que se estabelece a partir da ideia de que os índios estejam em extinção, e que por isso se faz necessário “proteger” os elementos culturais do passado, para que sejam preservados na memória; b) A síndrome de querer ser índio: comum em culturas brancas que fetichizam as culturas nativas e o nativo por meio de imaginações românticas e utópicas – a exemplo do bom selvagem; e c) A culpa em busca de redenção – que leva pessoas brancas, cientes dos estragos realizados à cultura indígena, a se interessarem pelas culturas nativas a fim de que tenham os seus débitos emocionais sanados (CATENACI, 2017, p. 320)

O último ponto a ser destacado pela teóloga é a noção de hibridismo, muito influenciada pelos escritos de Jeannine H. Fletcher. “Para Fletcher, a discussão do eu e do desenvolvimento humano na teoria feminista oferece recursos úteis para a reconstrução de uma identidade mais dinâmica, fluida, que está constantemente em relação com os outros” (PUI-LAN, 2015, p. 62). Com o processo da globalização é introduzido “as noções de desterritorialização, dispersão e hibridismo dentro de uma cultura global de certa maneira sem raízes e contextos fixos” (WALTER, 2008, p. 38). E através desse processo as identidades religiosas passam por adaptações e reformas.

Nesta encruzilhada (entre o local e global) onde diferentes elementos culturais se encontram, se transformam e se renovam as diferentes identidades religiosas interagem e redefinem o ethos e as cosmovisões de suas diferentes comunidades em circunstâncias e contextos nos quais as migrações locais criam identidades hifenizadas e/ou diaspóricas ancoradas em comunidades, lugares, regiões, nações, continentes e culturas outras (OLIVEIRA, 2014, p.40)

Cada um de nós está em uma encruzilhada identitária. As múltiplas identidades são entrelaçadas, interseccionais, somos muitas e “por vezes, nossas múltiplas identidades podem até mesmo estar em desacordo entre si” (PUI-LAN, 2015, p. 63). Somos muitos e tecemos nossa vida entrelaçada com os nossos vários eus. Costuramos em nós as nossas experiências com as diversas linhas que encontramos durante a vida. Temos as linhas de filhas, mães, trabalhadoras, religiosas, pensadoras, negras, brancas, ricas, pobres, héteros, gays. Cada linha se cruza, se complementa, se contradiz e diz o que realmente se é, o que se tem feito de si, o que tem se tornado a ser. “Tal compreensão da identidade híbrida, que desafia o dualismo e binarismo, ajudará a sobrepujar o impasse da uniformidade e da diferença do diálogo interfé e nas teologias da religião” (PUI-LAN, 2015, p. 63). Para Pui-Lan o hibridismo favorece o diálogo interfé em três pontos

i) A identidade híbrida pode estimular conexões com membros de fora do nosso grupo; ii) A identidade híbrida leva em conta a identificação parcial de identidades sobrepostas, o que possibilita acontecer a colaboração para além das fronteiras religiosas; iii) A identidade híbrida desafia a pureza que leva em conta a dupla ou múltipla pertença religiosa (PUI-LAN, 2015, p. 62-63). (CATENACI, 2017, p. 320)

Entretanto, Pui-Lan nos alerta para o discurso de que “somos todos híbridos” pode esconder um discurso colonial, tornando invisível tal diferença hegemônica de poder. Tal visão pode gerar uma imposição de uma cultura sobre outra. Fletcher utiliza da obra de Homi Bhabha (O Local da Cultura) para pensar as dinâmicas de colonização e ambivalência do hibridismo, que pode ser utilizado para a manutenção do poder.

Tecendo novos horizontes

Pensar novos horizontes teológicos para a construção de uma cultura de paz significa pensar em outras visões em relação ao Divino. Voltamos a primeira citação do antropólogo Le Breton. Na mesma floresta existem inúmeras florestas. Não há uma visão única da floresta, nem a visão correta dela, apenas há corpos que sentem a floresta de diversas maneiras. Da mesma forma há corpos que sentem a experiência com o Divino de jeitos distintos. Por isso os conceitos de ortodoxia e heterodoxia não dão conta mais da multiplicidade de vivências com a fé em um mundo tão plural e híbrido quanto o que estamos vivendo.

Kwok Pui-Lan traz o conceito de polidoxia para expandir e tecer novos sentidos e tecidos teológicos. Para a teóloga polidoxia é “a ideia de que os cristãos não têm monopólio da revelação de Deus, e que a divindade deveria ser compreendida em termos de multiplicidade, irrestringibilidade e relacionalidade” (PUI-LAN, 2015, p. 74). Quando se acredita que apenas a sua própria religião é que a salva, é a verdadeira ou superior em relação as outras, se cria um espírito de intolerância e preconceito. Verdades fechadas e exclusivas acabam por minar a pluralidade dentro da própria tradição religiosa.

A polidoxia insiste que nenhuma teologia ou credo pode exaurir o sentido de Deus e alegar infalibilidade doutrinal. […] A polidoxia partilha a afinidade com a teologia apofática, que insiste que a natureza de Deus não pode ser plenamente descrita, e que só podemos falar a respeito do que Deus não é, em vez de sobre o que Deus é (PUI-LAN, 2015, p. 75-76)

Encarar o Divino como o Mistério da Vida, substituir as certezas e acabamentos por dúvidas e infinitude, compreender que a nossa razão não consegue captar. A polidoxia entende, assim como o teólogo Raimon Panikkar disse que “aquele que não conhece senão sua própria religião, não a conhece verdadeiramente. É necessário que se conheça ao menos uma outra religião diversa para poder situar em verdade o conhecimento profundo da religião professada” (1998, p. 74). A noção de polidoxia abre mais o espaço para o diálogo interfé, pois ninguém estará defendendo sua própria identidade, já que as fronteiras estão mais fluidas. Um Divino aberto, inacabado, que muda, flui. Um Divino da nuvem do não-saber, infindável e inesperado. Assim como esse Mistério é fluido, fluente e flexível (PUI-LAN, 2015, p. 76) entramos também nessa roda da vida, desapegando de conceitos fechados para poder experimentar o rio que corre e transborda.

Bibliografia

CATENACI, Giovani F. Globalização, gênero e construção da paz (Kwok Pui-Lan). Estudos de Religião, v. 31, n. 2 • 317-321 • maio-ago. 2017

CORNILLE, Catherine; MAXEY, Jillian.  Women and Interreligious Dialogue. Oregon: Wipf and Stock Publishers, 2013.

GROSS,Rita M. Buddhism After Patriarchy : A Feminist History, Analysis, and Reconstruction of Buddhism. State University of New York Press, 1993.

Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998

PUI-LAN, Kwok. Introducing Asian Feminist Theology (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000)

_____________. Globalização, gênero e construção da paz: o futuro do diálogo interfé. São Paulo: Paulus, 2015.

RIBEIRO, C. “Fronteiras”, “entrelugares” e lógica plural: a contribuição dos estudos culturais de Homi Bhabha para o método teológico. Estudos de Religião, vol. 26, junho – dezembro 2012, pp. 12-24

RUETHER, Rosemary R. “Women and Interfaith Relations: Toward a Transnational Feminism” in CORNILLE, Catherine; MAXEY, Jillian.  Women and Interreligious Dialogue. Oregon: Wipf and Stock Publishers, 2013.

WADE, Michelle. The Feminist, Postcolonial Asian Theology of Kwok Pui Lan. Disponível em <https://docs.google.com/document/d/1i4Ai_5i1rwLU2s03AUmauVm1VuyRqr56gZM7nfnl6ug/edit > Acesso em < 01 de mar de 2017

WALTER, Roland. Mobilidade cultural: o (não-)lugar na encruzilhada transnacional e transcultural. Interfaces  Brasil / Canadá , Rio Grande , n . 8 , 2008.

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2 pensamentos sobre “Entre–diálogos: inter-religiosidade e gênero

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