Corpo-mulher-mancha: igualdade de gênero

Falar de igualdade de gênero é falar de corpos. Corpo a corpo. Qual valor tem o corpo da mulher? Começo minha fala com esse questionamento. Qual valor tem o corpo da mulher? Não, não, o corpo-mulher não tem o mesmo valor que o corpo-homem.

O Ministério Público registra 8 casos de feminicídio por dia no Brasil, e sabemos que esse dado não bate com a realidade. Somos o quinto país com maior índice de feminicídio do mundo. Qual valor tem o corpo da mulher? Mesmo assim a discussão de gênero tem sido banida, estigmatizada, demonizada nos espaços públicos. Por que isso? Qual a razão disso?

O corpo-mulher é mancha.  “De origem grega e hebraica, o símbolo da mancha é entendido “como algo que nos infeta de fora” (RICOEUR, 1982, p. 171), pelo contato ou contágio. Nesse sentido, a infecção ou contágio dar-se-á pelo “simples” fato de estar no mundo, orientado num espaço e num momento cósmico.” (COSTA, 2008)

A teologia cristã clássica, com sua interpretação patriarcal, colocou a mulher como a representante do mal. Ivone Gebara, no seu livro Rompendo o Silêncio, nos recorda que “Para os homens, o mal é um “fazer” que se pode, de alguma forma “desfazer”. Mas para as mulheres o mal está em seu ser. Ser mulher já é um mal ou, pelo menos, um limite. Nesse sentido, o mal que elas fazem se deve a seu ser mau, um ser considerado mais responsável pela “queda” ou desobediência do ser humano a Deus”. (2000, p. 31).

O Mal está em seu ser. Ela é a própria mancha, o próprio sofrimento. Assim foi formado o corpo-mulher-mancha. Desvalorizado, inferiorizado, demonizado. A Santa Igreja e os teólogos reafirmaram e reafirmam o desprezo pelo corpo-mulher, vale relembrar frases célebres misóginas de teólogos, pais da igreja, como Tertuliano, Agostinho, Thomas de Aquino e muitos outros e todos com o seu desprezo pela mulher. A teologia clássica atesta e confirma a violência contra a mulher. Violência simbólica, de palavras, de culpa, de servidão e purificação – maternidade. A cruz imposta, segundo Ivone.

Mulher – O corpo que deve ser mortificado, escondido, não mostrado. O corpo que fere a todos. O corpo mais excluído e exilado da teologia, do mundo público, da vida. Corpo de Eva. Corpo de mulher. Corpo que é sacrificado, temido, odiado, desprezado. Corpo da insegurança, do pecado, oprimido, vestido, submisso. Corpo martirizado. Corpo que não tem vez, voz, valor.

Quantas mártires desconhecidas? Quantas mulheres que lutavam e não são homenageadas? Quantas Santas que são mortas após terminarem seus programas? Quantas mulheres trans que são violentadas e mortas diariamente? Quantas mulheres… quantas mulheres… quantas mulheres mortas.

Na periferia a exploração da mulher negra. As trabalhadoras silenciadas e abusadas pela violência. A solidão do corpo-mulher-negra. Manchada por ser mulher. Manchada por ser negra. Encarceramento. Mulher da roça. Da terra. Sangue nos engenhos. Como falar de igualdade de gênero se não pensarmos nesses corpos? Se a igualdade de gênero não chegar na periferia, no campo, não chegará em nenhum lugar. Campo, cidade e periferia, lutas que devem se entrelaçar, se cruzar.

O desprezo do corpo da mulher, o mal-de-ser-mulher, encarnação do pecado. “A culpa é dela, não minha. Ela provocou. Tinha que dar uma lição nela. Teve o que mereceu. Isso não é jeito de ser mulher. Não quer ficar comigo? Você vai se arrepender. Se eu te der uma te parto no meio.” 18 homens decidem o futuro de mulheres. Camilla Abreu, Iarla Lima, Dandara dos Santos, Raphaella Noviski, Maria Madalena Bueno, Elisabete Pinto de Oliveira, Maria Aparecida da Silva Santos, Marli de Araújo.

Nosso corpo, corpo de mulher é corpo que sente. Corpo que se lambuza na luz sol. Bebendo as gotas de orvalho da aurora. Corpo que acolhe outras mulheres no abraço caloroso, que chora, se alegra, luta. É preciso resistir, encontrar sopros de esperança, se unir a outras mulheres e ser um corpo-mulher no mundo com sonhos e imaginação, com a força para lutar e criar novos mundos e espaços para a mulher. Recriar categorias teológicas, fazer teologia a partir do ser-corpo-mulher. O corpo de mulher, de mulher, negra, branca, asiática, lésbica hétero, bi, queer, trans, virgem, de tesão, indígena, religiosa, de luta, de sofrimento, de prazer. Corpo que toca corpo. Corpo que se encontra com a Palavra Divina no corpo.

[Parte do texto apresentado no lançamento da Agenda Latino-americana 2018 em São Paulo]

COSTA, Celso. O conceito de mal em Paul Ricoeur. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de PósGraduação em Filosofia na UFSM, 2008.

GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio – uma fenomenologia do mal. Petrópolis. Ed. Vozes, 2000

 

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