sobre pintar folhas secas

após o café da manhã me sentei em frente à uma árvore anciã. grande mãe de todos os seres. acendi um incenso e por lá fiquei até que fosse consumido por inteiro. não foi tarefa fácil, pois demora um bocado e se concentrar nem sempre é fácil. por isso dizem que a meditação é um exercício – requer paciência e persistência. mas fiquei por lá. na companhia dos pássaros que bordavam sons nos meus cabelos loiros. nos raios sol da manhã que pintavam cores nas minhas mãos carentes. e no vento que pingava frescor nos meus pés cansados.

li o bom e velho gitanjali. o canto 80 ressoa em mim até agora, quando o sol já de pôs. o primeiro verso diz: “sou como um resto vaporoso de nuvem outonal, vagando sem destino pelo céu”. você bem conhece meu apresso pelos místicos e místicas e confesso que tagore capta em muitos sentidos o que penso. “sou como um resto vaporoso de nuvem outonal, vagando sem destino pelo céu”. na verdade nem é o que penso, é como me sinto. sinto vagando pelos céus estrelados da índia como em um eterno retorno a mim mesma. e nesse retorno a mim encontro – o que chamam por ai – de deus. não gosto muito dessa palavra. aprendi com uma amiga que ela está desgastada demais e afinal essa palavra não consegue apreender esse mistério que me tanto fascina desde a infância. busquei por muito tempo na religião esse mistério, esse deus, mas descobri que o mistério escorreu pelos córregos do mundo, pelos esgotos a céu aberto, pelos rios sagrados. escorre como chuva, neve, lágrimas. o mistério escorre pelos meus dedos.

dedos que tentaram prender a fumaça do incenso de hoje cedo. elas dançavam tão lindamente entre os raios recém nascidos do sol dourado da índia que tentei guardar um pouquinho para mim. mas é maya – ilusão. todo apego é ilusão. é preciso deixar ir, escorrer, desaparecer. assim foi deus pra mim: parei de tentar segurar com as mãos. apenas deixei ir. apenas vivo esse mistério. apenas contemplo a fumaça do incenso dançando. a água escorrendo. as lágrimas caindo.

duas lindas senhoras pintaram minhas mãos com lindas flores. não ficarão para sempre. não na pele externa. mas estarão estampadas pela eternidade no meu coração. gosto da cor laranja. cor do fogo. fogo que purifica. não naquela velha concepção de pecado, juízo final e coisa do tipo. mas o fogo que é fonte e sustentação do universo – assim diz um livro sagrado hindu. minhas flores são laranjas. talvez para que minhas mãos sejam purificadas para eu poder pintar em tintas aquareladas o meu sentimento dourado.

me despedi do sol. com minhas tintas e meus livros fui para debaixo do ipê amarelo. passei horas por lá. até que terminei minha pintura. contemplei o sol. peguei folhas secas do ipê e me pus a pintá-las. ‘que utilidade tem pintar folhas secas? logo vão se quebrar… logo vão apodrecer… logo não estarão mais aqui. pois bem, nem eu. em diversas conversas entre nós já disse e reafirmo: adoro coisas inúteis. brincar não é útil – entenda utilidade como o que o capitalismo espera que a gente faça: produzir. gosto da poiésis do brincar. pintei orações nas folhas secas para que o mistério as leve para longe e acolha em seu não-ser. pinto folhas secas para que da mesma forma que observo o incenso eu lembre: tudo passa.

mas minha cara amiga, para mim foi uma diversão e tanta. quando criança pintava as revistas, fazia bigodes, óculos, cabelos diferentes. e também adorava me riscar. minha mãe detestava: “angelica, o que é isso?”. desenhava nas pernas, pés, mãos, braços… acho que queria me colorir de mim mesma. ser mais angelica do que era. voltar para mim mesma. voltar para o mistério…

 

com amor,

angelica.

hyderabad, 2018

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