Mulheres, Direitos Humanos e Protestantismo

Quando falamos de Direitos Humanos uma imagem vem em nossa mente: um homem. “A Declaração de Direitos Humanos, em seu nascimento, está fortemente relacionada com a ideia do homem como modelo e representação do ser humano em sua totalidade, o que quer dizer que esses direitos humanos só têm tido como referência o sexo masculino como paradigma do humano” (ORTEGA, 2005, p. 93).

 É aquela velha discussão sobre dizer quando dizemos “homem” estamos automaticamente incluindo as mulheres, sendo assim, não teríamos que reivindicar os “direitos humanos das mulheres”. O patriarcalismo tem uma grande influência em nossa sociedade, inclusive, nas perspectivas de direitos humanos quando se usa uma linguagem masculina. Joana Ortega diz que “Nós, mulheres, temos sido tratadas nessa sociedade como seres inferiores, submissos e dependentes, sem nenhum direito e respeito por nossa identidade de gênero” (2005, p. 94).

Em uma época em que apenas existia apenas a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1791

Olympe de Gouges, revolucionária francesa articulada com milhares de mulheres, decidiu por fazer a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Por isso, foi condenada à morte na guilhotina. A sentença que proferiu a sua condenação dizia que ela “(…) se imiscuiu nos assuntos da República, esquecendo-se das virtudes do seu sexo (…)” (TELLES, 2007, p.19)

O Estado tem sua assinatura teológica. Mas qual teologia assinou as práticas estatais? Uma teologia feita por homens e para os homens, visto que a mulher não era considerada um “alguém-social’ ou um “alguém-teológico”. E por isso precisamos pensar: Qual a crítica da teologia feminista para a temática de direitos humanos?

Vivemos uma crise política-econômica-social, estamos vendo a violência tomar uma proporção alarmante em nossa sociedade. E infelizmente, sabemos que por nossa cultura ser enraizada no androcentrismo e patriarcalismo as mulheres são as vítimas privilegiadas.

Assim a violência contra elas está presente por todas as partes e se ergue em múltiplas maneiras. Mulheres de todas as condições – crianças, jovens e anciãs, da cidade e do campo, crentes e não crentes – sofrem violência por sua condição de gênero. E mais, essa violência aparece muitas vezes justificadas, incentivada e sustentada religiosamente, e, o que é pior, frequentemente as próprias vítimas se desculpam e defendem o violador porque está internalizado os sentimentos de inferioridade e culpabilidade (ALLIONE, 2004, p. 153)

O corpo da mulher é um corpo matável? Há um livro chamado “Textos de Terror: Leituras literárias-feministas de narrativas bíblicas” de Phyllis Trible que aborda as histórias de mulheres que são vítimas de violências na Bíblia: Agar, a escrava usada, abusada e jogada; Tamar, a princesa violada e descartada; uma mulher anônima, a concubina violada, assassinada e esquartejada; a filha de Jefté, a virgem morta e sacrificada. Entre outras como o sequestro e estupro de Dina, a única filha de Jacó. Batseba, que é obrigada a ter relações com o Rei Davi que a vê como apenas um objeto de desejo. (ALLIONE, 2004, p. 154-155).

Textos como esses, segundo Elsa Tamez, “eternizam a tristeza, a violência e a marginalização da mulher” (1998, p. 87). Devo concordar com o sábio que escreveu Eclesiastes: “Não existe nada novo debaixo do sol” (Ec 1:8).  A violência contra a mulher foi e ainda é uma realidade, portanto, falar de direitos humanos sem a perspectiva de gênero é mais uma violência que estamos sendo acometidas. Nossos direitos continuam sendo violados, “pois a realidade prática dos mecanismos nacionais e internacionais na aplicação dos direitos silencia e torna invisíveis os desejos, as necessidades e as demandas das mulheres” (ORTEGA, 2004, p. 94).

Elizabeth Fiorenza faz ressonância com a nossa pergunta: “as estruturas socioculturais de dominação têm sido teologizadas e, consequentemente, reforçadas”. Repensar as categorias teológicas se faz um trabalho necessário. A começar por um ponto crucial da nossa teologia cristã, protestante e católica: A imagem de Deus. Quando pensamos em Deus qual imagem nos vem a mente? Homem. Culturalmente, Deus tem gênero e é masculino. E não apenas gênero: Deus tem cor: Branco. E não apenas cor, Deus tem opção sexual: Hétero. E não apenas opção sexual, Deus tem classe: Rico.  Portanto, se a teologia da Imago Dei diz  que somos feitos à imagem de Deus, pois então: como sou feita, no meu corpo mulher, à essa imagem e semelhança? Como partilho dessa dignidade proposta por esse conceito se esse Deus é tão distinto do meu corpo de mulher, do corpo de mulher negra, do corpo de mulher trans, do corpo de mulher lésbica?

“No que se refere à divindade, o vazio feminino está presente nos céus. As mulheres nunca foram dignas de estar sentadas no céu, nem ter anjos a seus pés. As mulheres nunca tiveram verdadeiramente seu “dublê” divino nos céus. Tiveram sim que se contentar com o rosto da divindade masculina, forçosamente convencidas de sua inferioridade ontológica e histórica, pois nada nelas assemelhava-se ao divino para merecer uma habitação digna nos céus.” (GEBARA, 1991, p. 18)

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Eu poderia aqui pensar o papel das mulheres na Reforma Protestante e como elas foram silenciadas, ou o que o protestantismo favoreceu as mulheres, mas resumo toda esses pontos em uma citação da Rosemary Ruether que diz: “nas sociedades protestantes as mulheres precisaram de cem anos de luta contínuas para romper barreiras básicas que lhes negavam os direitos civis e a educação” (p.37). Por mais que o protestantismo ventilou um pouco as igrejas em relação aos direitos humanos, não podemos nos iludir que é por isso que o protestantismo trabalha em prol do direito das mulheres. Outro ponto que temos que ter em mente é que não podemos reduzir o protestantismo a uma coisa só. Há protestantismos e protestantismos, é sempre no plural.

A teologia feminista tem o ponto de partida no cotidiano e corpo das mulheres: violência doméstica, violência psicológica, estupro, humilhação, racismos. O corpo da mulher sente essa opressão, e não nos enganemos: esses corpos que sofrem estão nas nossas igrejas! Uma pesquisa realizada por Valéria Vilhena aponta que 40% das mulheres que sofrem violência doméstica são evangélicas. Como temos agido como igreja em prol dos direitos das mulheres? Não estou nem chegando no ponto sobre legalização do aborto, que a bancada supostamente evangélica manobrou para tirar os direitos mínimos como em caso de estupro ou em risco de morte da gestante. É preciso de coragem, inclusive, para ser uma mulher protestante.

A Bíblia diz em Lamentações 3:21 que temos que trazer a memória aquilo que nos traz esperança. Estamos aqui em homenagem ao reverendo Martin Luther King Jr, que foi assassinado por seguir os seus sonhos e lutar pelos direitos. Prestamos aqui também uma homenagem a Marielle Franco, que foi morta há um mês atrás por lutar pelos povos oprimidos, e ainda estamos sem respostas. Lembramos também de uma mulher, protestante, negra e que ainda continua em um quase anonimato, o nome dela é Rosa Parks.

A metodista Rosa Parks, a costureira que desobedeceu a segregação, que no dia 1º de dezembro de 1955, que pelo cansaço de uma vida injusta se negou a ceder a um branco o seu assento em um ônibus. E assim deu início a uma campanha de boicote aos ônibus de Montgomery, que durou exatos 382 dias e que foi se alastrando para outras cidades do sul dos Estados Unidos. O ato foi um marco no movimento antirracista nos Estados Unidos e Luther King passou a usar o exemplo de Rosa Parks e o sucesso do boicote para influenciar mais pessoas a militar pela causa.

É preciso desafiar o poder: desafiar os direitos humanos, desafiar as políticas públicas, desafiar nossa teologia, desafiar nossas igrejas. A teologia feminista é grito. É o grito do protesto que tem como objetivo não tornar normativa a violência que acomete mulheres de todo o mundo. Gritos corporais como os de Rosa Parks. Gritos da desobediência civil quando leis injustas se impõe sobre nós. Gritos contra a opressão contra nossos corpos em nome de “Deus”. É preciso desafiar, é preciso gritar!

Finalizo com o texto de II Co 4:9: “De todos os lados somos pressionadas, mas não desanimadas; ficamos perplexas, mas não desesperadas; somos perseguidas, mas não abandonadas; abatidas, mas não destruídas” […] Eu ainda acrescentaria: Roucas, mas não emudecidas! Pois continuamos e continuaremos a gritar! (TOSTES, 2016)

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TELES. Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos para as mulheres. São Paulo: Brasiliense, 2007 p. 38.

GEBARA, Ivone. Conhece-te a ti mesma – Uma leitura feminista do humano. São Paulo:
Ed. Paulinas, 1991.

RUETHER, Rosemary Radford. New woman, new earth: Sexist ideologies and human liberation. Seabury Pr, 1975.

ALLIONE, Lúcia Riba. “Cuerpos de mujeres y violencia. Una lectura desde la Biblia” in SCHICKENDANTZ, Carlos Federico. Religión, género y sexualidad: análisis interdisciplinares. EDUCC,, 2004.

VILHENA, Valéria Cristina. Uma igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas. Fonte Editorial Ltda., 2011.

ORTEGA, Joana. Igreja Protestante in ROSADO-NUNES, Maria José. Direitos humanos das mulheres nas religiões no século XXI. São Paulo: Edições Loyola, 2005

TOSTES, Angelica. Teologia Rouca. Disponível em < http://www.angeliquisses.com/teologia-rouca > Acesso em < 16 de Abril de 2018 >

*Texto de base para URBANUM : Protestantismo e Direitos Humanos realizado na Igreja Batista da Água Branca em 16 de abril de 2018.

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