Esse pequeno ensaio trabalha aspectos do padre Bede Griffiths e sua abertura aos temas considerados tabus em sua época e ainda polêmicos atualmente. Padre Bede Griffiths foi um monge beneditino inglês que viveu uma vida dedicada à contemplação e ao diálogo inter-religioso, principalmente o diálogo hindu-cristão. Em janeiro de 1990, Bede Griffiths sofre um mal súbito enquanto meditava durante a tarde. Por uma semana não conseguia falar e pensava que morreria, então, começou a se preparar para a morte, porém começou a melhorar. Nesse período de repouso, Griffiths, experenciou uma profunda crise espiritual:
Eu tomei café da manhã e, então, senti-me inquieto, perturbado, sem saber propriamente o que estava acontecendo. A inspiração veio novamente de repente para me render à Mãe. Foi bem inesperado: “Renda-se à Mãe”. E então, de alguma forma, eu me rendi à Mãe. Logo tive uma experiência de irresistível amor. Ondas de amor fluíam em mim. Foi uma experiência extraordinária. Eu acho que, psicologicamente, foi um marco para o feminino. Eu era muito masculino e patriarcal e estava desenvolvendo a animosidade, o lado esquerdo do cérebro, todo esse tempo. Agora, o lado direito do cérebro – o feminino, o poder fônico, o poder terreno – veio e me acertou. Quando pensei em me render à Mãe, […] era mais a Virgem Negra que vinha à mente. A mãe que é mãe da terra e dos céus – Mãe Natureza, como um todo. Eu também pensei na minha própria mãe e na maternidade em geral […] Eu posso enxergar como crescer em uma sociedade patriarcal e viver todo esse tempo do intelecto, esse [outro] lado havia sido suprimido. (GRIFFITHS, 1997, p. 89)
Griffiths experienciou a potência arquetípica feminina, como no já mencionado mal súbito que lhe acometeu em 1990, três anos antes de seu falecimento. Mas antes mesmo de tal experiência mística, Griffiths já estava mais atento a questões do feminino na fé e religião, questionando inclusive a exclusão das mulheres no ministério da Igreja Católica e a negação da potência feminina. Todo esse despertar ao feminino teve grande influência da tradição hindu chamada Tantra, que valoriza a experiência com a Grande Mãe, normalmente representada por Kali, que se assemelha muito com a descrição mencionada no capítulo dois ao relatar essa Madona Negra, a qual ele teve a visão de se render a Mãe. O Tantra é muito ligado as energias sexuais, a qual se acredita ser um meio de alcançar o Divino, e é também a tradição da união de Shiva (energia masculina) e Shakti (energia feminina), tradição que influência essa visão do “casamento do oriente e do ocidente” e suas estereótipos que veremos no capítulo a seguir. Interessante notar que esse acordar ao feminino, esse encontro com a própria mentalidade patriarcal, também se torna uma crítica à Igreja e seus modelos fixos de exclusão – incluindo as mulheres e os/as homossexuais. Griffiths foi um homem à frente de seu tempo, como veremos nesse tópico, pois mesmo temáticas ainda consideradas tabus hoje em dia, ele já alargava as fronteiras para um cristianismo abrangente e livre de preconceitos
1. As mulheres e dimensão feminina
A dimensão feminina e a presença de mulheres fortes na vida de Griffiths foi notória. A mãe de Griffiths teve uma grande influência sua vida. Após a crise em que seu pai perde o emprego e a situação financeira da família fica abalada, sua mãe corajosamente mantinha as coisas funcionando. Robert Hale destaca que Griffiths compreendia, desde seus primeiros anos, que a dimensão feminina não significava apenas o nutrir e amar, mas também a força e suporte (2006, p. 1). Griffiths sempre ansiou altos ideais, trabalhando para que isso fosse concretizado. Então, em seus anos de Oxford as mulheres dificilmente apareciam (DU BOULAY, 1998, p. 18). Nesse processo, como ele mesmo menciona em suas biografias, houve um foco no mundo intelectual, racional, o qual ele associa ao aspecto masculino do ser, e um afastamento da dimensão da anima interior, do seu lado poético e feminino. Em toda sua trajetória Griffiths, conforme demonstrado no capítulo dois, tentou encontrar o equilíbrio entre as forças da razão e da intuição. Seu encontro com a natureza e poesia o despertaram para o aspecto intuitivo, entretanto, devido às influências patriarcais das estruturas sociais, ainda assim, o aspecto feminino foi muito reprimido. Griffiths foi influenciado por Toni Sussman, discipula do próprio Carl Jung, o que, veremos no capítulo seguinte, foi uma grande influência para o pensamento de Griffiths. Em Jung, Griffiths encontrou o que lhe permitiu intuir um equilíbrio entre o suposto masculino do Ocidente e o feminino do Oriente, com o os conceitos de animus e anima.
Em seu tempo de Índia, Griffiths foi cercado por discípulas, nomes como Judy Walter, Eusebia, Asha Paul, mulheres que tiveram uma importância particular em sua trajetória. Outra mulher notável em que manteve uma amizade profunda foi a Irmã Pascaline Coff. Griffiths se relacionava com as mulheres não apenas como professor, mas como amigo e aprendiz. As mulheres na vida de Griffiths, sem dúvida, o fizeram perceber uma visão da Igreja pelos olhares das mulheres, e também a visão do Deus cristão em seu aspecto feminino.
Griffiths nota que “a tradição hebraica era patriarcal e o cristianismo preservou só o conceito masculino de Deus. O Pai e o Filho são masculinos em seus próprios nomes, e mesmo o Espírito, que é neutro em grego, recebeu um caráter masculino” (2000, p. 166). Mas também ressalta que na tradição hebraica há a palavra ruah, que é uma palavra feminina para o Espírito. Griffiths apresenta a tradição da Igreja Síria que conserva essa tradição do Espírito como feminino, em que seus fiéis chamam o Espírito Santo de Mãe. Ele relembra que no Antigo Testamento há a bela figura da Sabedoria (hocmah), que é uma palavra feminina. Griffiths diz: “Nesse sentido, podemos dizer que Deus é Pai e Mãe ao mesmo tempo, e mesmo o Filho, como a Palavra de Deus, pode ser chamado de Filha de Deus” (GRIFFITHS, 2000, p. 166). Entretanto, “é no Espírito Santo que se pode ver de modo evidente o aspecto feminino da divindade. O Espírito Santo é Shakti, o poder, imanente em toda criação, o poder receptivo da Divindade” (GRIFFITHS, 2000, p. 167).
Robert Hale aponta que deve ser notado a relação de Griffiths com as mulheres, até mesmo depois da morte, pois considera sintomático que as duas principais biografias de Bede Griffiths foram escritas por mulheres, Kathryn Spink e Shirley Du Boulay (2006, p. 7). Além de Griffiths criticar o patriarcalismo e paternalismo clerical e social do passado e do presente, assim como a misoginia, ele propõe uma nova forma de ser Igreja e de se pensar Deus.
Por três mil anos o mundo foi dominado pelas culturas patriarcais […]. Chegamos agora ao limite dessa cultura masculina, com seu caráter analítico agressivo, competitivo e racional. Estamos nos movendo agora para uma era em que o princípio feminino será valorizado. . . A religião cristã desenvolveu um conceito inteiramente masculino de Deus. Nós sempre falamos de Deus como Pai e da encarnação do Filho […] até mesmo o Espírito Santo […] nós concebemos normalmente em termos masculinos. […] Na tradição tântrica, que deriva da antiga cultura matriarcal, o aspecto materno de Deus é dominante. Nessa tradição, todo o universo é visto como derivado da Mãe e toda a adoração é oferecida à mãe. Isso é precisamente o oposto da tradição judaico-cristã. Podemos esperar, portanto, um desenvolvimento correspondente na teologia cristã reconhecendo o aspecto feminino de Deus e o lugar das mulheres no ministério da igreja. (GRIFFITHS, 1990, p. 294-295)
Essa última linha evidencia como livremente Griffiths se move do especulativo e teológico para implicações específicas para a prática católica. De fato, Bede Griffhts “acolheu o clero casado e os ministérios para mulheres” (DU BOULAY, 1998, p. 254).
Retomamos aqui a experiência do mal súbito que lhe ocorrera e da sua experiência profundamente mística, o seu despertar ao feminino, seu chamado a se render a mãe. Griffiths descreve essa experiência como o “abismo”, a “escuridão” em que ele foi mergulhado, como um processo profundo de sua experiência advaitica. É essa experiência que evocou para ele a Madona Negra e a Deusa da Terra como o “ventre” de Deus, o “maravilhou e inundou de amor” (WALTER, 1993, p. 9). É possível comparar sua experiência com a Deusa Mãe, com a experiência de Sri Ramakrishna, que teve uma visão avassaladora de Grande Mãe Negra, que para o hinduísmo é a forma da deusa Kali, representada pela energia de Shakti. Hale destaca que a partir dessa nova perspectiva transcendente, toda misoginia, todo paternalismo clerical e social parecia ser a coisa mais ridícula e ilusória (2006, p. 7). Após essa experiência com o divino em seu aspecto feminino, o testemunho profético de Bede Griffiths em favor das mulheres e do feminino tornou-se mais enfático em suas palavras e escritos. Pensava um Deus que era o Senhor, mas que na visão de Griffiths se aproximava mais de uma Mãe.
2. Tantra e suas influências
O verbo raiz do tantra, em sânscrito, significa “expandir” e é simbolicamente entendido para se referir a uma expansão de conhecimento e sabedoria, sugere então, a visão tântrica de que o universo inteiro é Shakti. Associado à palavra tantu, fio ou cordão, entende-se que representa um “continuum” de todas as realidades e tudo o que é (VATSA, 2016, p. 45).
O Tantra fornece um fio conectando o todo sem costura, que compreende tanto a transcendência e a imanência, Realidade e realidade, Ser e devir, Consciência e consciência mental, Infinito e finitude, Espírito e matéria … na terminologia sânscrita, nirvana e samsara, ou brahman e jagat. Aqui as palavras samsara e jagat representam o mundo familiar do fluxo que experimentamos através dos nossos sentidos. (FEURSTEIN, 1998, p. 1-2)
Bede Griffiths foi muito influenciado pelo tantrismo. Para compreender melhor o pensamento de Griffiths a respeito da temática é necessário determinar o que ele entendia pelo termo e filosofia. Griffiths via o Tantra como oposto do Vedanta, visto que o Vedanta busca o transcendente no mundo, e o Tantra busca a integração de todos os aspectos do ser humano em seu corpo, alma e espírito. Ele diz que o Tantra deriva da adoração a Mãe, o divino feminino, e é fundamentado na imagem feminina de Deus. Essa imagem e o próprio Tantra são de origem bastante arcaica, antecedendo tanto o hinduísmo quanto o budismo (TEASDALE, 1986, p. 236). São inúmeras as tradições que tem a Grande Mãe como princípio, sendo assim, as expressões são múltiplas: ela é a deusa, objeto de adoração, ela é shakti, o poder ou energia, ela é kundalini, a força, o natural e o divino, a realização do divino etc.
No Tantra, o corpo, a terra, natureza estão associados ao aspecto feminino do divino, com Shakti, e o objetivo é unir e harmonizar com o princípio masculino de Shiva. Há uma preocupação com o espaço do corpo no desenvolvimento espiritual, algo que foi desconsiderado em alguns pontos do Vedanta, e Griffiths considera de grande importância essa integração da espiritualidade com o corpo, e diz:
‘Aquilo pelo qual nós caímos é aquilo pelo qual nos elevamos’. Temos que usar o corpo, os sentidos, os apetites, os sentimentos, etc., como forma de retornar a Deus, o que é importante para nós (na tradição cristã), porque temos uma visão negativa ou desequilibrada do corpo e sexualidade (GRIFFITHS in TEASDALE, 1986, p. 237)
O caminho do Tantra enfatiza a transformação da pessoa, da natureza humana através do uso adequado e criativo dos poderes da natureza e do corpo. Shiva e Shakti, as energias que habitam dentro de nós, devem ser elevados para uma união e potência criativa. O ponto do Tantra é despertar a Shakti para se unir a Shiva. Nesse sentido, Shakti é entendido como a kundalini, a serpente dormente na base da coluna. Essa energia é também o impulso sexual que deve ser transformado e canalizado para a experiência mística, e esse é um dos propósitos do Tantra. A transformação em si ocorre através de uma disciplina que se concentra em elevar essa energia, dormente na base da coluna, até os chakras, os centros de energia (literalmente “rodas”), localizados em diferentes pontos da coluna vertebral.
Pode-se dizer que o objetivo do Tantra é a unificação da consciência, uma unidade que supera a dualidade, ou seja, advaita. O centro do Tantra não é alcançado até que essa unidade seja realizada de tal maneira que as polaridades sejam transcendidas, especialmente a de “interior” e “exterior”. Como a unidade não é apenas o objetivo, mas a natureza real da Realidade Última, todas as polaridades devem ser reconciliadas, e a dicotomia “masculino-feminino” simboliza para o tantrismo a dualidade da própria existência humana, que o iogue busca unificar (TEASDALE, 1986, p. 241). Teasdale destaca que Griffiths enfatizou o Tantra como um equilíbrio para a Vedanta, e em resposta a uma necessidade sentida na espiritualidade cristã, uma falta em sua teologia ascética, que nega, ou despreza o lugar do corpo. Pois o corpo não foi integrado ao processo de ascensão a Deus ou ao processo de crescimento espiritual (1986, p. 244).
O encontro com a filosofia tântrica permite que Griffiths faça uma autocrítica ao cristianismo, que pela negação do corpo, se tornou um cristianismo não entrelaçado com a vida. Ao retomar esses processos do corpo, dos sentidos, como meio de alcançar Deus, Griffiths, abre caminhos para outras formas de se fazer teologia, pensar Deus através do corpo, através da poesia. Quando Griffiths se encontra com essas tradições hindu, mergulha em si através da experiência do advaita, e reconhece o valor do feminino, do corpo e da sexualidade na teologia, ele permite que essas vivências o amadurecessem e isso transparecesse em sua teologia.
3. As diferentes formas de amar
No começo de sua vida, em sua casa, a temática da sexualidade era um tabu. Ele dizia que “sexo nunca foi mencionado […] Esta reserva não era incomum naqueles dias. Os jovens foram criados para nunca discutir sexo, religião ou quaisquer assuntos que possam levar a controvérsias […] (GRIFFITHS in DU BOULAY, 1998, p. 5). [5]Entretanto, posteriormente Griffiths se tornou muito mais acessível e aberto sobre o assunto, sendo influenciado pelos ensinamentos junguianos e tântricos, bem como dos escritos de D.H. Lawrence. Na biografia escrita por Shirley Du Boulay há um trecho que diz: “Ele disse pensativamente a um homem homossexual pedindo por seu conselho: ‘Quando eu era jovem, eu poderia ter sido um homossexual’” (1998, p. 65). Robert Hale questiona:
Ele quis sugerir, com este enigmático comentário, que ele já tivera algumas inclinações gays, mas se tornara enfaticamente heterossexual? Ou ele quis dizer que houve uma época em que ele poderia ter se tornado ativamente gay, mas através de sua prática espiritual ele havia sublimado suas urgências sexuais para o espiritual? (2006, p. 8)
Em todo o caso, sabe-se que as inquietações acerca da sexualidade sempre o cercaram. “Seus sentimentos sexuais, que lhe causaram grande angústia e das quais ele acabaria falando livremente, nunca encontraram expressão física: toda a sua energia foi direcionada para a busca de Deus” (DU BOULAY, 1998, p. 65). Du Boulay retoma as relações complicadas que Griffiths tivera em seus momentos de escola e em Oxford, evitando os “atletas” e se juntando aos “estetas”. Naquele período Oscar Wilde se tornou um santo patrono em sua vida. Em seu grupo de estudos e amizade as mulheres eram ausentes, mas houve uma forte presença masculina que parecia compensar. Mas nada disso foi fácil para Griffiths, pois as transformações de sentimentos apaixonados, especialmente aqueles de natureza sexual, já era algo com o qual Griffiths lutava, ainda em Oxford (1998, p. 35).
Dudley, seu irmão mais velho, um dia o levou para passar uma temporada em Paris, se esforçando para dar continuidade a sua “educação sexual”. Visitaram juntos os cabarés e os salões musicais de Montmartre, na companhia de um amigo do seu irmão que vivia com uma prostituta. Du Boulay ressalta que nem essa situação provocou em Griffiths qualquer frisson particular, entretanto, satisfez sua curiosidade (1998, p. 35-36). Posteriormente, Griffiths chega à conclusão de que estivera reprimindo seus desejos sexuais, concentrando-se intensamente nos estudos, ele diz: “Meu despertar para a beleza da natureza e meu sentimento pela poesia veio como liberação misericordiosa para essa repressão, mas ainda me deixou desequilibrado (GRIFFITHS, 1954, p. 45)[7]. Em uma conversa com sua primeira biógrafa, Kathryn Spink, Griffiths ainda acrescenta que a amizade intensa era uma relação na qual o sexual poderia estar implicitamente presente, mas controlado, ainda que com luta e sofrimento, em um contexto maior, intelectual e espiritual (1989, p. 74).
Spink e Du Boulay destacam a amizade e companheirismo dos primeiros anos pós-Oxford, em Eastington, com seus amigos Martyn e Hugh. Em suas autobiografias sempre é mencionado esse momento de vida, que Griffiths coloca como decisivo para todos eles (1954, p. 92). Du Boulay observa que essa experiência foi, ao longo dos anos subsequentes, como “amarrá-los juntos com aros de aço” (1998, p. 32). Griffiths reconheceu mais tarde e disse à Spink
Eu tinha uma amizade muito profunda com uma pessoa. Foi realmente um amor imensamente profundo. Sempre começava no espírito, depois tornava-se emocional e sempre o elemento sexual entrava, e como lidar com isso foi o problema por anos, anos e anos. (1989, P. 74)
Para Spink essa luta gerou uma tensão contínua, pois para Griffiths havia um abismo entre a teoria compreendida intelectualmente e a prática integrada em Eastington, nesse sentido é provável que Griffiths tenha sofrido por isso (1989, p. 74). Mas as amizades intensas floresceriam novamente nos últimos anos de vida de Bede Griffiths. No final de sua vida, ele escreveu a um jovem indiano por quem ele sentia um laço particularmente profundo (HALE, 2006, p. 8). Ele dizia: “Uma coisa eu percebo. Eu preciso muito da sua presença. Não é apenas o pensamento de você, mas a sua presença, que de alguma forma está sempre comigo, como parte da presença de Deus para mim.” (GRIFFITHS in DU BOULAY, 1998, p. 237). Posteriormente ainda diz:
O Espírito Santo, Cristo em nós, atravessa todos os níveis do nosso ser e nos torna um neste último fundamento. Eu sinto isso com você como algo bastante definido, há um vínculo oculto além do nosso eu-consciente ao qual sempre temos que retornar, e isso é verdade na medida de nós todos. Isso é o que significa amar com a totalidade do seu ser. (GRIFFITHS in DU BOULAY, 1998, p. 237).
Du Boulay comenta que Griffiths eventualmente percebeu que as horas que ele e Russill passaram juntos poderiam de fato levar a suspeitas de uma relação homossexual entre eles, então, ele escreveu sobre essa possibilidade com uma honestidade transparente (1998, p. 223), dizendo:
Não há dúvida de que é um amor humano envolvendo todo o nosso ser – corpo, alma e espírito – e não tenho dúvidas de que há nele um elemento sexual, pois certamente existe uma afeição humana profunda. Mas a fonte desse amor está no “espírito”, o ponto em que ambos estamos abertos ao amor de Deus, e essa é a força controladora em nosso relacionamento (GRIFFITHS in DU BOULAY, 1998, p. 223)
Du Boulay comenta que por Griffiths amar uma pessoa totalmente e de maneira única, ele aprendera sobre o próprio amor de uma forma mais pessoal e nova, ainda observa que esse amor se estendeu para incluir outros (DU BOULAY, 1998, p. 237; HALE, 2006, p. 8).
Nesse contexto, não é nenhuma surpresa em dizer que Bede Griffiths não era homofóbico. Em seu tempo de Oxford, vivia rodeado de amigos gays, entre eles Richard Rumbold, também católico, que no tempo de Pluscarden, sugeriu a Griffiths que este escrevesse sua autobiografia, o que ele fez e se tornou o The Golden String. (HALE, 2006, p. 9). Foi após a integração da sua espiritualidade e sexualidade que homens homossexuais viessem até ele pedindo ajuda. Andrew Harvey, autor de diversos livros incluindo “Essential Gay Mystics”, foi um amigo muito chegado de Griffiths até o fim de sua vida. Du Boulay destaca que Andrew Harvey foi outra pessoa a qual sentia que as coisas mais profundas que ouvira sobre sexualidade vieram por parte de Griffiths, ela pontua que “em parte porque ele nunca se sentia na presença de alguém que tivesse feito um horrível ato de repressão sobre si mesmo (1998, p. 192). E o próprio Harvey afirmou a respeito de Griffiths: “Acho que ele tinha uma grande capacidade de amar, que absorveu grande parte dessa energia sexual” (DU BOULAY, 1998, p. 193). [12]E do período final da vida de Griffiths, Harvey observou o “amor totalmente terno, que é o que ele estava dando a todos” (HARVEY in DU BOULAY, 1998, p. 262)[13].
Diante de tudo isso, não é de surpreender que Bede tenha assumido posições até hoje bastante avançadas em relação à homossexualidade. Seu artigo, “On Homosexual Love” (Sobre o amor homossexual), começa com a afirmação de que o amor homossexual é “tão normal e natural quanto o amor entre pessoas do sexo oposto” (GRIFFITHS, 1991). É a profundidade de comunhão no amor que as pessoas em última análise desejam. Ele cita a amizade cristã do monge cisterciense inglês do século XII, Elredo de Rievaulx, para quem o amor fraterno era realização de seu amor a Deus. (GREEN, 2011, p. 161) E nesse contexto, ele adverte contra “espiritualizar o evangelho”. Alguns podem se sentir desconfortáveis com o exemplo de Griffiths. No entanto, ele explica que, como o amor envolve todo o nosso ser, corpo, alma e espírito, “existe um elemento de sexo em todo amor humano” (1991) , algo que exige aceitação e respeito, em vez de vergonha. Destaca que pode ser bastante degradante se o instinto sexual dominar o relacionamento; por outro lado, “um amor espiritual sem qualquer base no sexo seria desumano” (1991). Griffiths considera este último como “um dos maiores perigos da vida espiritual” (1991). A integração de toda a pessoa depende de as emoções serem “guiadas pelo espírito e abertas à presença do Espírito Santo (GREEN, 2011, p. 161). Du Boulay compreendia que Griffiths buscava uma igreja que tivesse uma atitude positiva ao corpo e sexo, e que sentisse que a homossexualidade fosse apenas uma forma de amor, nada além disso (1998, p. 254).
Em 1992 a Congregação para a Doutrina da Fé da Igreja Católica publicou o documento intitulado “Algumas reflexões acerca da resposta a propostas legislativas sobre a não-discriminação das pessoas homossexuais”. O documento argumentava que, embora seja bom e correto defender os direitos humanos básicos até mesmo dos homossexuais, a igualdade total não pode ser reivindicada para eles quando se trata de serviços públicos essenciais, um trecho por exemplo, diz
As pessoas homossexuais, como seres humanos, têm os mesmos direitos de todas as pessoas, inclusivamente o direito de não serem tratadas de maneira que ofenda a sua dignidade pessoal. Entre outros direitos, todas as pessoas têm o direito de trabalhar, de ter uma habitação, etc. Todavia, estes direitos não são absolutos. Podem ser legitimamente limitados por motivos de conduta externa desordenada. Isto, às vezes, é não só lícito, mas obrigatório. Além disso, não se trata apenas de casos de comportamento culpável, mas até mesmo de casos de acções de pessoas física ou mentalmente doentes. Assim, aceita-se que o Estado limite o exercício dos direitos, por exemplo, no caso de pessoas contagiadas ou mentalmente deficientes, para proteger o bem comum. (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 1992)
A resposta desse documento quase imediata, enquanto a publicação da Igreja saiu no dia 9 de Agosto de 1992, a resposta de Griffiths saiu no dia 14 de Agosto de 1992. Bede Griffiths enviou uma resposta ao National Catholic Reporter, que alegremente publicou uma página inteira com uma grande foto de Bede Griffiths. Seu artigo intitulava-se, significativamente, “For Those without Sin” (Para os que não têm pecado), em sua resposta, ele começa concordando, aparentemente (e ironicamente), com a posição do Vaticano, dizendo
Tenho certeza de que todos aqueles que acreditam que a igreja deve manter uma moralidade cristã rígida se regozijarão com a publicação do novo documento sobre a homossexualidade, que exige a proibição de todos aqueles que fazem professam esse vício, e da ação contra eles no que diz respeito à admissão aos serviços públicos, especialmente escolas e exército. (1992, p. 20)
E então, ele vem com sua crítica ferrenha, ou como diria Robert Hale, com sua bola curva, e diz
Mas por que parar na homossexualidade? Não deveria a igreja ser igualmente severa contra todos aqueles que ofendem a moralidade pública, particularmente, por exemplo, contra aqueles que frequentam bordéis. Mas há também as inumeráveis pessoas que hoje são conhecidas por viverem em pecado, isto é, casais que vivem juntos sem o vínculo do matrimônio. Mas há aquelas pessoas casadas que são conhecidas por serem infiéis aos seus votos matrimoniais. Não deveriam todas essas pessoas ser banidas? A igreja deve ser vista contra todas as formas de fornicação e adultério, especialmente no que diz respeito à moradia e emprego. A proibição de todas essas atividades poderia ter um efeito profundo na sociedade. (1992, p. 20)
Pois então, continua pedindo a severidade da igreja em todos esses casos. Que exclua todas essas pessoas do serviço público!!! (HALE, 2006, p. 9). E então ele conclui, abruptamente, com o breve parágrafo decisivo, que leva tudo do nível de condenação e moralismo para um plano superior do Evangelho de Cristo. Bede está oferecendo uma crítica profética do que foi dado, mas também propondo um novo horizonte de graça e reconciliação
Existe o perigo, no entanto, de que essa [exclusão de tantos] afete seriamente o recrutamento para as forças armadas e também escolas e hospitais. Isso poderia levar a uma crise severa, que poderia forçar a igreja a cumprir ao dito do evangelho: “Deixe aquele que não tiver pecado, atirar a primeira pedra.” Isso mudaria toda a situação. Em vez de sustentar uma moralidade legal como a dos escribas e fariseus, a igreja poderia, então, ser vista pregando o evangelho de Cristo. (1992, p. 20)
Robert Hale relata sua experiência com Griffiths
Em 1991, quando Bede tinha 85 anos, ele estava novamente visitando o Ocidente, e eu tive a grande honra de mostra-lo o campus da Graduate Theological Union em Berkeley. Ele confirmou o caráter aberto, ecumênico e inter-religioso do G.T.U. Ele explorou a livraria com especial prazer e propósito – estava comprando para a biblioteca do Shantivanam, na Índia. Ele me perguntou o que eu recomendaria como os melhores livros nas áreas de espiritualidade e teologia feminista, negra, latino, americana e gay. A livraria da G.T.U. tem prateleiras dedicadas a todas essas áreas específicas. E fiquei espantado com a sua abertura e entusiasmo – ele parecia um jovem seminarista iniciando seus estudos! Alguns de nossos visitantes do exterior (mesmo alguns poucos de Berkeley!) permanecem perplexos, até mesmo ameaçados pela G.T.U. e sua livraria. Mas aqui estava um monge idoso de outro continente encantado com os desafios dessas novas áreas de espiritualidade e teologia. Que exemplo para os católicos, refleti para mim mesmo, para a igreja, para o envelhecimento, para todos! (2006, p. 6)
Traçamos nestas páginas como a vida de Bede Griffiths e sua teologia foi vivida à margem, e de lá ele falou, escreveu e agiu profeticamente, desafiando a igreja institucional, procurando ajudar os pobres, promover o diálogo inter-religioso, afirmar mulheres e o feminino, proteger e promover os direitos das pessoas homossexuais e reconhecendo o significado do privilégio nos últimos anos. Sua teologia foi forjada nas fronteiras e produziu frutos de justiça, paz e comunhão.
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GRIFFITHS, Bede. Casamento do Oriente com o Ocidente: Hinduísmo E Cristianismo. São Paulo: Paulus, 2000.
____. Retorno ao Centro: O Conhecimento da verdade – o ponto de reconciliação de todas as religiões. São Paulo: Editora Ibrasa, 1992.
_____. The Golden String: The Autobiography of Bede Griffiths, Benedictine of Prinknash. Whitefish: Literary Licensing, LLC, 1954
______. The Universal Christ: Daily Readings with Bede Griffiths. 1990
______. For those without sin. National Catholic Reporter, p. 20, August 14, 1992,
DU BOULAY, Shirley. Beyond the darkness: a biography of Bede Griffiths. Doubleday Books, 1998.
GREEN, Beatrice Alice. A christological interpretation of” The Golden String” of Bede Griffiths’ spiritual journey. 2011.
SPINK, Kathryn. A Sense of the Sacred: A Biography of Bede Griffiths. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1989
TEASDALE, W. Bede Griffiths as mystic and icon of reversal. America, New York, v. 173, n. 9, p. 22, Sep 30 1995.
__________. Towards A Christian Vedanta: The Encounter Of Hinduism And Christianity According To Bede Griffiths. Fordham University, ProQuest Dissertations Publishing, 1986
WALTER, Judy in Pascaline Coff, OSB, “Bede Griffiths O.S.B.: The Man, the Monk, the Mystic” (Obituary) (Sand Springs, OK: Osage Monastery, 1993).
HALE, Robert. Bede Griffiths Centenary Conference in California. Bulletin of the Bede Griffiths Trust – The Golden String. Vol. 13 No. 1, 2006
VATSA, Shefali Pandya. The Goddesses’ Call to Dance: Experiences of Garba Dancers During Navaratri. 2016. Tese de Doutorado. Pacifica Graduate Institute.
FEUERSTEIN, Georg. Tantra: The path of ecstasy. Shambhala Publications, 1998.