a menina sentada

o puro linho vermelho queimado desfia ao mero toque desajeitado. o tecido vai minguando, minguando até não existir mais, até não querer existir mais. as linhas estão soltas e se prendem em qualquer aresta mais aguda pelo caminho, e isso o desgasta– e isso o esgarça, o desgraça ainda mais. os fragmentos estão espalhados por toda a minha cama. tento em vão costurar – conectar partes desconexas, encontrar a agulha ideal, a linha ideal, o ponto ideal.  reviro toda a casa nessa busca, mas nada encontro a não ser o silêncio sem ruídos. e claro, os grandes olhos que me seguem da menina sentada de egon schiele – ela também veste linho vermelho queimado. seu olhar perdido encontra o meu olhar perdido e perdida no tempo me desvaneço em mim, em nós. as pernas cruzadas, sua meia amarela, seus braços cruzados e fechados para o mundo e abertos em um abraço profundo de si. a boca entreaberta, como se buscasse os ventos em que os corvos voam. por uns minutos a fio esqueço dos fios de linho vermelho queimado espalhados em minha cama. esqueço das agulhas. esqueço dos tecidos desgastados pelo tempo e desfiados pela vida. mas, mesmo dentro dessa suspenção de tempo e espaço na qual me torno um com a imagem à minha frente, sinto de maneira mais profunda os nós que habitam em mim. o plural de mim. quando eros e tânatos se enlaçam nas noites de núpcias e em um só beijo desfalecem. como a serpente que apenas se liberta após passar pelos sete círculos sagrados. me encontro tirando retratos em uma câmera sem filme. mas o olhar perdido se perde com o meu e em vão buscamos o palpável, em vão buscamos os fios que conectam o incompreensível e emaranhado de nós, em vão as agulhas se espalham na cama com seus perigos de perfurarem as peles sensíveis de nós. agora me encontro nesse período limiar entre o dia e a noite, quando os últimos raios de sol ainda insistem iluminar o meu quarto e as estrelas já brilham em um horizonte distante. e o que me resta é este silêncio revelador dos medos, das angústias, dos fantasmas. Isso é bom – assim posso abraçar os nós que estão em mim. o afago de um silêncio rosado e de uma interioridade translúcida que desnuda a toda a ilusão do controle. o silêncio é um infinito polissêmico, um vazio da significação em suspense. furo meu dedo na agulha. sou trazida pela dor e sangue ao presente. rasgo o silêncio com a canção que diz que o ontem está morto, que o presente é uma ilusão e que o amanhã é apenas um pesadelo distante. olho mais uma vez a menina sentada, mas dessa vez, é o meu reflexo no espelho.

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