Ressurreição: a resistência das mulheres

 

Rubem Alves dizia que “os cristãos incluíram uma declaração estranha no seu Credo. Diziam que criam e desejavam a ressurreição do corpo. Como se o corpo fosse a única coisa que importasse…. Mas haverá coisa que importe mais? ”. Pensar o corpo dentro da Tradição Cristã não é tarefa fácil, embora o cristianismo seja a celebração do corpo e o seu principal rito é feito pelo corpo e no corpo. O corpo é excluído da reflexão teológica. A teologia cristã tradicional exilou o corpo da pátria da teologia, afinal, o que o corpo tem a ver com as coisas do dito “espírito”? Ao que parece, o Deus que fez o corpo é um Deus sem corpo. (GEBARA, 2016, p. 89). Nessa alienação do corpo de si mesmo o que foi o grande “condenado a morte” foi o corpo de mulher. O corpo que deve ser mortificado, escondido, não mostrado. O corpo que fere a todos. O corpo mais excluído e exilado da teologia.

Penso essa temática a partir da teologia feminista. A teologia feminista é ação, é voz, é pensamento discordante, é inquietação e não se calará frente às desigualdades impostas por uma cultura misógina e patriarcal. Com esse ponto inicial, pensamos: Quais corpos merecem a ressurreição? A teóloga feminista Rita N. Brock diz que a fé na ressurreição deve vir de vislumbres reais da nossa habilidade de transformar o nosso mundo de sofrimento (1988, p. xi). Teologias feministas, negras, indecentes, teologias da libertação e do evangelho social trouxeram novos ventos na teologia cristã para pensar a fé: Essas teologias “rejeitam a promessa atrasada do paraíso e buscam em compreender o significado da ressurreição mais como realidade viva do que uma fraca esperança”. (1988, p. xi).

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HAZEL BELVO, GODDESS HEART, 2012

Falar de direitos reprodutivos e cristianismos é tarefa urgente em nosso complexo tempo de avanços e retrocessos neste campo, sobretudo quando se trata dos usos, desusos e abusos da religião em relação aos corpos das mulheres. Os tempos trouxeram a lástima de usos conservadores do gênero como “ideologia”. Eles que pretendem imobilizar e desarticular a potência histórico-metodológica da categoria gênero, ao intervir e deslocar o discurso para deslegitimar a produção dos saberes dos estudos de gênero. E mais, eles tentam desmerecer os processos de luta aos enfrentamentos das desigualdades sociais e estruturas de poder – apoiado veementemente pelas instituições religiosas ligadas à tradição cristã ocidental.

Crentes abortam. E elas encontram cumplicidade em Deus. Não, não é na religião cristã, mas em um Deus do cotidiano que traz ressurreição do pão, vida, do filho que volta para casa, da filha que não é abusada, da criminalização dos direitos, das possíveis mortes do pela mão do Estado.“Ressurreição significa levantar-se, erguer-se, recuperar a vida. […]. Ressuscitar no cotidiano é apostar na realidade da vida presente como a realidade mais fundamental. É essa a realidade que tem consistência porque expressa o que vivemos e como respiramos” (GEBARA, 2017, p. 105). A realidade latino-americana das mulheres não é nada fácil. Nossa realidade, de um Brasil de 2019, também nos coloca pedras à porta para impedir a ressurreição, porém, nossas companheiras do passado, do presente e do futuro insistem em remover pedras, destravar portar, furar tetos, quebrar janelas para que a ressurreição venha acontecer. Movimento feminista como ressurreição dos corpos oprimidos pelo Estado e Religião.

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HAZEL BELVO,GODDESS UNDER GRASS, 2012

Católicas pelo Direito de Decidir, Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Fé_ministas, Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, entre tantos e outros coletivos de religiosas que buscam a ressurreição a partir do corpo-mulher-vivo. As políticas de morte, necropolítica de Achille Mbembe, fazem parte do Estado em que define os corpos-matáveis, o homo sacer de Agamben. Então, para Agamben é “a vida matável e insacrificável do homo sacer”,  que Agamben retoma o conceito de um antigo termo do direito romano, que é um “adjetivo parece designar um indivíduo que, tendo sido excluído da comunidade, pode ser morto impunemente, mas não pode ser sacrificado aos deuses.”   Assim, o homo sacer se situa entre o sagrado e o profano, entre o puro e o impuro, “tratava-se de um homem que o povo julgou por um crime e, apesar de não ser permitido sacrificá-lo sob o jugo da lei, quem o matasse não cometeria homicídio, ficando impune.” Quem são as mulheres que morrem ao fazer um aborto? Falar de Direitos Reprodutivos é falar de interssecionalidade, na qual a classe, gênero e raça se fundem para oprimir ainda mais os corpos. Quem morre ao fazer um aborto? Quem tem dinheiro para uma clínica? Quem morre sozinha e com medo? Quem é denunciada por médicos? Quem morre? Para Mbembe:

[…] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornas possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para aceitabilidade do fazer morrer” (Mbembe, 2018, p. 18).

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HAZEL BELVO, FLOWER GODDESS, 2012

Pensar a ressurreição dos corpos de mulheres é criar estratégias para desativar os dispositivos de bio-poder sobre os corpos. É abolir o racismo, a classe e o gênero, como prevê as feministas contemporâneas do xenofeminismo. É reprogramar o sistema em modo de autodestruição. Desmitologizar o aborto (HESTER, 2018, p, 82). “O feminismo teológico reivindica a experiência da ressurreição também para as mulheres. Nós ressuscitamos, nós temos ações de ressurreição, muito embora as instituições religiosas não tenham afirmado isso de nós” (GEBARA, 2017, p. 110).

A teóloga Elizabeth Stuart diz que “não foi apenas Deus que derrotou a morte, mas que esse Deus o fez em carne humana, e isso tem profundas implicações para a própria carne. ” Uma carne que irrompe a tumba, uma carne que é carne, mas diferente. Uma carne não mais feita para a divisão, nem para o esquecimento. No cristianismo as políticas de morte não tem poder de determinar o fim da corporeidade, o fim da vida. O Deus cristão subverte o natural. Nossas companheiras do Xenofeminismo dizem que “O naturalismo essencialista fede a teologia – quanto mais rápido o exorcizarmos, melhor.” É necessário o exorcismo de uma teologia que fede necropolítica. Se o Cristo subverte o natural, então não há razão para acreditar que o plano de Deus para o gênero é limitado pelo processo natural de reprodução heterossexual. E, de fato, uma leitura completa da Bíblia nos apresenta numerosas mulheres cuja importância para a obra de Deus supera de longe seus papéis reprodutivos. As mulheres aos olhos de Deus são muito mais do que esposas e mães; na verdade, elas não precisam ser esposas e mães para serem figuras centrais na narrativa bíblica, ou para serem figuras centrais na obra de Deus no mundo de hoje. (Reichgott, 2009)

Refazendo a teologia a partir do corpo, da sexualidade, do cotidiano. Costuramos novos sentidos para temas já conhecidos. E buscamos o diálogo com nossas irmãs de fé e corpo que são marcadas por uma religião castradora da sexualidade e do corpo. A experiência de ressurreição abrange a integralidade do corpo, seus desejos, paixões, devires.  A morte não tem a última palavra. Acreditamos na ressurreição do corpo e ela passa por políticas de direitos para a vida de plenitude de todas as mulheres.

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HAZEL BELVO, Emptying Out, 2012

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p.9-12.

GEBARA, Ivone  “Corpo, novo ponto de partida da teologia”. In RIBEIRO, Cláudio (org). Rasgando o Verbo – Teologia Feminista em foco. São Paulo – Fonte Editorial, 2016.

GEBARA, Ivone. Mulher, poder e religião: ensaios feministas. São Paulo: Edições Terceira Via, 2017

HESTER, Helen. Xenofeminism. John Wiley & Sons, 2018.

.Manifesto – Xenofeminismo > http://laboriacuboniks.net/pt/

MBEMBE, A. (2018). Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições

REICHGOTT, Heather W. Resurrection and natural law: a feminist perspective, 2009

STUART, Elizabeth. Queering Death” in The Sexual Theologian, eds. Althaus-Reid and Isherwood (T&T Clark, 2004), p. 62-63.

 

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