Religião, Diálogo e Múltiplas Pertenças

“Nunca fui senão uma coisa híbrida
Metade céu, metade terra”
Jorge de Lima,

(“Anunciação e encontro

de Mira-Celi”, 1943)

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Esta obra que ora apresentamos contém análises de pesquisadores e pesquisadoras de certo destaque no cenário acadêmico sobre as experiências de dupla ou múltipla pertença religiosa, dentro do quadro de valorização do pluralismo. Tais vivências são muito mais abundantes do que se imagina, possuem conexões com variados aspectos do quadro cultural brasileiro e ainda não encontram a atenção e a visibilidade devidas por partes dos setores sociais, religiosos e acadêmicos e outros grupos interessados no campo das espiritualidades e no estudo da religião.

As abordagens do tema serão feitas a partir da indicação de elementos que possibilitam avaliações mais apuradas das experiências de múltiplas pertenças religiosas, sobretudo no Brasil, e como elas incidem na reconstrução das identidades religiosas e das culturas. Entre tais elementos, destacamos primeiramente a maior atenção ao destaque que o crescente quadro de pluralismo religioso tem para a vida das pessoas e grupos, o que lhes possibilita maiores informações e mais fácil e rápido acesso às diferentes propostas religiosas.

Um segundo elemento é a importância de se pensar criticamente o quadro de pluralismo religioso, não a partir do conceito moderno de religião, em geral compartimentalizado, racionalizado e formal, mas a partir de como se dá efetivamente a relação entre vida cotidiana e expressões de fé. A própria expressão dupla ou múltipla pertença pode não ser considerada adequada se for entendida sob o viés das religiões institucionalizadas. Ou seja, o que pode ser visto como dupla ou múltipla pertença por um estudioso ou estudiosa do assunto, autoridades religiosas ou mesmo para pessoas interessadas no tema, pode não ser para uma pessoa ou grupo que vive tal experiência e a considera integradora e única, ainda que tenha múltiplas faces.

Outro elemento importante nas análises é  a verificação de que tais experiências são vividas em espaços de fronteiras e nos entre-lugares das culturas onde brotam os novos signos que colaborarão e contestarão as definições e ideias sobre as sociedades. Ao lado disso está o reconhecimento de que a matriz cultural e religiosa brasileira, devido ela ser marcada historicamente por elementos mágicos e místicos, fruto de uma simbiose das religiões indígenas, africanas e do catolicismo ibérico, facilita os chamados processos de dupla ou múltipla pertença religiosa.

Outra constatação é o declínio das religiões tradicionais e o crescimento das novas expressões religiosas não-cristãs, além da presença das pessoas sem-religião. Além disso, vemos também que o fenômeno de trânsito religioso se dá a partir de processos complexos de reelaborações e recriações culturais, resultantes das interações de variados sistemas de crenças, não se reduzindo à apenas a transferência de uma religião para a outra. Essa variedade de processos gera duplas ou múltiplas pertenças religiosas.

Portanto, o quadro religioso brasileiro é complexo e variado e, para o compreendermos melhor, precisamos de maior atenção à diversidade cultural, análises científicas mais precisas e enfoques inovadores. É que esperamos oferecer com essa obra.

Claudio Ribeiro analisou as experiências de dupla ou múltipla pertença religiosa no Brasil dando destaque ao crescente quadro de pluralismo religioso que cada vez mais possibilita às pessoas um volume acentuado de informações em velocidade jamais vista e mais fácil acesso às diferentes ênfases e possiblidades religiosas. O autor realça a importância de se analisar a diversidade religiosa a partir das expressões espontâneas, híbridas e fronteiriças presentes no cotidiano, e não a partir de visões institucionalizadas e compartimentalizadas que o conceito moderno de religião produziu. O autor também constata que os trânsitos religiosos ocorrem, não apenas na migração de uma religião para a outra, mas também na recomposição simbólico-cultural de diferentes sistemas de crenças, o que torna um fator gerador de dupla ou múltipla pertença.

Sílvia Fernandes analisa aspectos das culturas religiosa e midiática atuais no contexto da juventude brasileira. A autora apresenta a temática da mobilidade religiosa, hoje tão marcante no cenário cultural brasileiro, para, em seguida, articulá-la com a cosmovisão juvenil sobre o religioso instituído e os modos mais fluidos e transitórios de passar por ele ou situar-se nele. As reflexões feitas realçam o debate sobre a relação entre cultura midiática e juventude. A indicação é que há elementos comuns na natureza do campo religioso e do midiático, como por exemplo a experiência, a instantaneidade e as trocas mútuas. Eles contribuem na formatação das novas sociabilidades e experiências dos jovens, incluindo as religiosas, que, em geral, se dão em “cliques e trânsitos”.

Raimundo C. Barreto analisa as relações inter-religiosas e as possibilidades de diálogo inter-religioso na perspectiva do que ele conceituou como “giro mundial do cristianismo”, caracterizado pelas mudanças demográficas e culturais significativas que tem alterado intensamente a face do cristianismo em todo o mundo desde a segunda metade do século 20. Trata-se uma nova realidade globalizada que coloca em xeque a hegemonia cristã ocidental e gera zonas de múltiplas interações culturais e religiosas. Uma crescente conscientização da pluralidade religiosa forja novas formas de aprendizado para vivências inter-religiosas. Ainda que as polarizações entre as aberturas ao diálogo e os fechamentos fundamentalistas marquem o cristianismo na atualidade, ele vem se mostrando cada vez mais plural, tanto em suas relações internas quando inter-religiosas.

Angélica Tostes analisa, a partir de suas pesquisas, mas sobretudo de suas vivências inter-religiosas, as nuances do encontro entre Oriente e Ocidente, compreendendo-as sobre os diferenciais de poder nessa relação colonial. Além disso, a autora aborda, a partir da contribuição de renomados autores e autoras, a história e o conceito do chamado Orientalismo. Ela destaca dois aspectos importantes no contexto inter-religioso: i) a crítica ao diálogo inter-religioso quando este representa uma mesa de elite; ii) e a relação complexa entre identidades fixas, negociações e múltipla pertença religiosa. Angélica também indica novos ares para o diálogo inter-religioso, para que ele possa romper com barreiras institucionais e ser construído na concretude da vida e nas relações do cotidiano. As múltiplas pertenças religiosas acabam por desestabilizar o diálogo inter-religioso institucional.

Marcelo Barros apresenta a pertença religiosa simultaneamente una e múltipla como uma resposta adequada ao Mistério que também é uno e múltiplo. O autor, a partir estudos e de experiências próprias vividas em meio à comunidades e grupos populares, mostra que a maioria das pessoas no Brasil continua ligada a práticas religiosas, mas sem que estas deixem de ser enraizadas nas culturas locais, boa parte delas ligadas a religiões ancestrais. Além das devoções e expressões declaradamente cristãs, muitas pessoas vivem caminhos espirituais que constituem o que se passou a chamar, sobretudo nos ambientes acadêmicos, acertadamente ou não, de dupla ou múltipla pertença. Isso porque as pessoas podem, por distintas e variadas motivações, muito bem indicadas no texto, harmonizar diferentes expressões religiosas, sem considerar que se trata de uma “dupla” ou “múltipla” pertença, mas sim algo integrador e único, ainda que possua diferentes expressões.

A capilaridade dos espaços de atuação dos autores e das autoras e a qualidade com a qual desenvolvem suas análises são notáveis. Tais fatos, somados à importância e o destaque da temática, possibilitará, em nossa ótica, uma possibilidade singular de aprofundamento das questões, tanto aquelas específicas sobre o tema desta obra como outras que marcam o cenário do debate sobre religião no Brasil.

Tostes&Ribeiro

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