Repensando o Pecado

Em dias de muitos barulhos e informações, se faz necessário voltar as tradições mais elementares do cristianismo e repensá-las de maneira profunda. Temo que as teologias progressistas emergentes tem sido produzidas de acordo com uma demanda “mercadológica” na ideia da produtividade, sendo assim, a reflexão complexa é deixada de lado. Porém, nesse texto não pretendo abarcar os usos da tecnologia da informação e como nos tornamos prisioneiros da lógica do like e compartilhamento de posts, tweets e imagens e a lógica da “lacração”. Mas pretendo refletir o que muitas vozes têm repetido incessantemente sem a devida reflexão.

Na tradição cristã o conceito do pecado foi muito discutido. Aprendi, desde cedo, que existia a “Lei do Pecado e da Morte” e que nascemos pecadores. Então, os pecados começaram a ser nomeados e junto com eles as culpas, penalidades e a espera pelo castigo eterno de Deus. Todos esses discursos foram amarrados e selados pela lógica hétero-patriarcal, que culpabiliza e pune as mulheres como as que originaram o pecado e a natureza pecaminosa. Por de trás de todos esses conceitos teológicos há a misoginia e o ódio próprio que nos coloca contra a nós mesmas, ou como diria Ivone Gebara, com uma cruz imposta e o exílio de si.

A teologia ocidental seguiu Agostinho na lógica do pecado como condição humana. Se debruçar sobre a temática se faz uma necessidade. O que é o pecado? Como repensar o pecado a partir da teologia que promova vida? Quando digo que “homofobia é pecado” ou que o “machismo é pecado” ou “racismo é pecado”, o que quero transmitir como discurso? Bem, se formos seguir noções teológicas clássicas diremos que essas pessoas merecem a punição divina, o inferno eterno, o castigo e assim por diante. Aliás, eu mesma já ouvi muito isso pelos meus posicionamentos teológicos por parte daqueles que chamamos de “fundamentalistas”.  Agora, eu me pergunto (e te pergunto): As noções de pecado das teologias progressistas bebem dessa mesma lógica punitiva da cristandade?  O que significa o pecado nessas frases, muitas vezes, usadas?

Essas inquietudes me fizeram pensar o que eu mesma penso como pecado. A partir de Rita Nakashima Brock pensarei com vocês algumas pistas sobre o pecado. Como teólogas feministas, compreendemos o pecado como algo socialmente e historicamente produzido, os quais nos aguardam tomar a responsabilidade por tal injustiça e acabar com a opressão e sofrimento (Rita N. Brock, p. 7, 1991).  Mas além disso, entendemos que esse pecado histórico e social causa danos em nossa existência, na nossa capacidade de nos relacionarmos conosco, com o nosso próximo e próxima, com o mundo e Deus. A conexão que teríamos como seres viventes é quebrada e desconectada, e assim, o sofrimento emerge.  Sempre que houver divisão, haverá sofrimento e conflito em nossas ações.

O pecado vai emergindo sorrateiramente nas nossas relações, pois elas tem o poder de nos destruir e nós participamos na destruição quando buscamos destruir a nós próprios e aos outros. Quando nossa ignorância e a nuvem de ilusão nos cega a pensarmos que somos mais ou menos do que alguém, ali o sentimento de separação/pecado se faz presente. O pecado é um sintoma de um coração quebrado, separado de si, em como somos danificados em nossas relações  e não como somos maus, desobedientes ou culpáveis perante Deus.   Dessa forma, há uma verdade tão profunda que Rita N. Brock nos deixa:

“O pecado não é algo para ser punido, mas algo a ser curado” (Brock, p 7)

Como cristãos e cristãs progressistas, militantes, ou qualquer que seja a palavra-rótulo a ser utilizada, precisamos mergulhar na nossa própria espiritualidade e no nosso caminho sagrado. Do contrário, estaremos estabelecidos na binaridade que tem sido colocada nos dias de hoje. Ao vivenciar essa binaridade, esquecemos que o mundo é muito maior e complexo do que nossa bolha da rede social. Quando penso em Jesus, o vejo além desse jogo de linguagem violenta. Lembro-me da frase de Nietzsche que devemos ter cuidado ao lutarmos contra os dragões e monstros para não nos tornarmos também um desses.

O ódio, os preconceitos, racismos, violências contra as mulheres, mortes da população LGBTI+, o desprezo pelos pobres, tudo isso que temos visto em nosso contexto, e que consome o nosso coração de angústia e raiva das pessoas que nos violentam tanto;  o exercício de lembrar que cada pessoa violenta é, também, uma pessoa quebrada em suas relações e que cada vez que alguém comete alguma dessas atrocidades também faz consigo mesma, nos dá uma outra perspectiva de cristianismo progressista que está para além do social e histórico, mas também é existencial. O olhar de misericórdia que devemos aprender de Jesus requer uma renúncia do ego, da razão, da raiva e nos leva a transformar a realidade social-histórica na perspectiva do perdão e cura.

O pecado é sempre uma ruptura de si, do outro-a-e, da natureza, de Deus, que gera os males sociais e históricos. Se aprofundar em Deus é sair em direção a toda Criação, curando os enfermos de alma que não se compreendem como parte de um todo (eis a raiz de todos os problemas). Honestamente, pensar os problemas sociais a partir da lógica de Jesus dá um trabalho que só, e muito mais para o nosso ego do que para o intelecto. Viver, ou tentar viver, a dimensão do perdão e da transformação de si para o todo, como Jesus viveu, eis aí o que deveríamos nos dedicar.

“Onde o pecado abundou, superabundou a graça” (Rm 5:20). Graça como parte da construção de um mundo de justiça. Graça como união de nós com nós, de nós com a humanidade e criação, de nós com o divino.  Homofobia, racismo, machismo são pecados? Sim, pois fere a dignidade e plenitude humana. E que levemos a cura para aqueles e aquelas que cometem tal insanidade, não apenas à um grupo minoritário específico, mas de igual maneira, a si próprios.  Como fazer isso? Peça a Deus para que Ele lhe conceda sabedoria. A simplicidade pode nos custar muito.  Como diria Elisée Reclus “isoladxs nada podemos, enquanto que, pela união íntima, podemos transformar o mundo.”

Oração de São Francisco:

Senhor, fazei de mim um instrumento da Vossa paz.

Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.

Amém!


Brock, Rita Nakashima. Journeys by heart: A Christology of erotic power. Wipf and Stock Publishers, 2008.

Gebara, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminsta do mal. Editora Vozes, 2000.

 

 

 

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