A história do diálogo inter-religioso é a história da elite religiosa. E essa elite, em sua maioria, é masculina. Catherine Cornille disse que elas as aparências, o diálogo inter-religioso é conduzido por homens e pelos homens. As grandes imagens dos encontros são homens, líderes religiosos, com suas vestes litúrgicas, propagando solidariedade e respeito das diferentes crenças. Isso também acontece no mundo acadêmico e teológico: as grandes publicações, volumes, artigos, são predominantemente masculinos. Mas, como destaca a Cornille, não é nada surpreendente. Pois, de longe a liderança da maioria das religiões continua sendo predominantemente masculina, portanto, é esperado que as mulheres estejam ausentes ou sub-representadas nos oficiais diálogos inter-religiosos (2013). Não apenas mulheres são silenciadas nos diálogos inter-religiosos oficiais ou nas produções acadêmicas: os povos colonizados do Sul Global; intelectuais e religiosas negras e negros; a população LGBTQIA+ ; povos indígenas, tribais e dalits; pessoas com deficiência; religiões de tradição oral…Dessa maneira, é necessário um giro decolonial nos processos do diálogo inter-religioso, ouvir as vozes marginalizadas que não tem sido convidadas à mesa do diálogo inter-religioso (KWOK, 2015, p. 8).
Um ponto interessante é estabelecer que o diálogo inter-religioso não é um diálogo entre o cristianismo e outras religiões. Há uma relação de poder estabelecida pelo Ocidente Cristão que dita as formas, regras, lógicas e epistemologias do diálogo inter-religioso. Dessa maneira, para entrar de fato em diálogo é preciso reconhecer o diferencial e a relação de poder. Kwok Pui-Lan alerta que é preciso que as teólogas ou teólogos cristãs ocidentais não cometam o erro colonialista com as pessoas de outras religiões com o discurso de “salvação” (ex. Islã e as mulheres), para acontecer de maneira profunda esse diálogo interfé entre corpos marginalizados é necessário saber que há sim um discurso de poder, “porque mulheres de credos diferentes não entram no diálogo em pé de igualdade” (KWOK, 2015, p. 38). Outro ponto de destaque é a apropriação indevida, como utilizar de rezas, rituais de povos tradicionais sem compreender a profundidade, mas apenas para se mostrar inclusivo. “A mera inclusão de algumas vozes simbólicas, sem reconsiderar fundamentalmente as pressuposições e os esquemas epistemológicos atuantes não é verdadeira diversidade” (KWOK, 2015, p. 52-53). Pui-Lan ressalta 3 motivos a respeito da apropriação: a)A negação: que se estabelece a partir da ideia de que os índios estejam em extinção, e que por isso se faz necessário “proteger” os elementos culturais do passado, para que sejam preservados na memória; b) A síndrome de querer ser índio: comum em culturas brancas que fetichizam as culturas nativas e o nativo por meio de imaginações românticas e utópicas – a exemplo do bom selvagem; e c) A culpa em busca de redenção – que leva pessoas brancas, cientes dos estragos realizados à cultura indígena, a se interessarem pelas culturas nativas a fim de que tenham os seus débitos emocionais sanados.

MY SANCTUARY – SALMA ARASTU
Kwok Pui-Lan diz em seu livro “Globalização, gênero e construção da paz” (2015) que diálogo interfé é um conceito mais assertivo do que diálogo inter-religioso. Para ela, o diálogo inter-religioso é um diálogo entre cristianismo e outras religiões, mas o diálogo interfé de um encontro de pessoas com uma fé viva dialogando. A expressão “interfé” se dá de maneira mais ampla, pois indica “que as conversações e interações estão acontecendo entre pessoas que pertencem a credos, e não entre religiões em si, entre religiões como sistemas de crenças e práticas” (2015, p. 21). Quando saímos do ethos institucional e passamos para a complexidade da vida e as interações humanas a dinâmica do diálogo interfé se dá de uma maneira orgânica e entrelaçada. Por essa razão, Kwok Pui-Lan acredita que: “O diálogo interfé se beneficiaria das intuições de estudos pós-coloniais, que questionam como o eu e o outro, o centro e a periferia, o dominador cultural e o marginalizado foram construídos” (PUI-LAN, 2015, p. 32-33). E é importante ter em mente que o diálogo interfé sempre aconteceu nas comunidades colonizadas e marginalizadas. As relações do cotidiano, os entrelaçamentos e negociações de identidade da própria comunidade, as uniões e ajuntamentos para a sobrevivência e resistência. É o diálogo dos leigos, das pessoas de base, que se unem e aprendem umas com as outras a dinâmica da vida e fé.

UNITY I – SALMA ARASTU
Quando pensamos em diálogo inter-religioso para quem estamos falando? De quem estamos falando? Muthuraj Swamy elucida esse problema no diálogo inter-religioso na Índia. Por exemplo, no diálogo hindu-cristão as “tradições e religiões populares entre as pessoas marginalizadas, como os Dalit ou os povos tribais, cruzam artificialmente as categorias de diálogo e são geralmente ignoradas” (2017, p. 104). O exemplo do diálogo hindu-cristão é ótimo para ilustrar a dinâmica do poder, pois é conduzido pela alta-casta ou tradições brahmanicas, pois a grande parte dos envolvidos nesse diálogo (mesmo vendo esses problemas) ainda acreditam que essas tradições da alta-casta são clássicas e autorizada, na verdade é o sinônimo de “Hinduísmo”: as massas são ignoradas. E o problema do colonialismo-orientalismo surge na construção ocidental do Outro (colonizado), “não apenas inventando e criando o Hinduísmo, mas construindo em termos dos seus próprios preconceitos europeus e com o foco nos “altos textos” disponíveis” (SWAMY, 2017, p. 105).
O diálogo interfé tem a preocupação com as epistemologias envolvidas no diálogo. Reflexões acerca dos referenciais teóricos sobre religião, identidades e espiritualidades devem ser tomadas em conta, caso contrário, o diálogo interfé cometeria os mesmos erros coloniais e de elite. É necessária uma abertura ao Outro, de modo que todos os conceitos e pré-conceitos sejam deixados de lado, e que esse Outro se defina a partir de si. Apenas dessa maneira será possível experimentar a dinâmica do diálogo interfé em plenitude: no meio do povo e para o povo.
Bibliografia: CORNILLE, Catherine; MAXEY, Jillian. Women and Interreligious Dialogue. Oregon: Wipf and Stock Publishers, 2013; KWOK, Pui-Lan. Globalização, gênero e construção da paz: o futuro do diálogo interfé. São Paulo: Paulus, 2015. SWAMY, Muthuraj. The Problem with Interreligious Dialogue: Plurality, Conflict and Elitism in Hindu-Christian-Muslim Relations. Londres: Bloomsbury Publishing, 2017