O diálogo é a marca do Evangelho de João. A potência do discurso é muito importante para essa construção textual joanina. O Logos, a Palavra, o Verbo que se faz carne. É assim que João começa o Quarto Evangelho, muito diferente do que outros evangelhos sinóticos. Há diálogos tão diversos! Diálogos individuais, em grupo, com líderes e autoridades, pessoas hostis, discípulos… Ao que nos parece, João quer nos indicar um modelo de construção do Reino de Deus: o diálogo!
Estudiosos e estudiosas notaram e consideraram o evangelho de João generoso com as mulheres, retratando-as como discípulos, apóstolos e até missionários. Elizabeth Schuessler Fiorenza afirma que as mulheres no evangelho de João são os paradigmas do discipulado apostólico e da liderança na comunidade joanina.
Em João 4:1-30 é relatado a história da mulher samaritana. A mulher samaritana é tradicionalmente retratada como uma pessoa imoral e inferior, em contraste com o caráter masculino divino, superior, puro, sem pecado, de Jesus. Da mesma forma, além de sua imoralidade, é enfatizada sua incompetência em compreender a linguagem metafórica e espiritual de Jesus, em contraste com sua sabedoria superior. Mas será que é isso mesmo? A teóloga Donna N. Fewell (1997) pergunta: “Como os leitores apresentam essas imagens desagradáveis da mulher samaritana? Como eles sabem tanto sobre ela e sua história?”
As leituras feministas descartaram essa interpretação julgadora e misógina da mulher samaritana, tentando reinterpretar e reconstruir a história prestando muita atenção ao contexto sócio-histórico da tradição antiga. Como a Musa Dube diz não podemos ter a leitura colonial desse texto, do Jesus que detém o conhecimento e a verdade, e a selvagem, sem conhecimento e experiências.
Nos identificamos com a mulher samaritana, com a múltiplas camadas de opressões. Porém, aqui enxergamos a mulher samaritana como na história retratando um comportamento incomum em vários aspectos, como ir sozinha ao poço, ir ao meio-dia, conversar com um homem em público e ter um relacionamento com mais de um homem. “Embora seus traços não convencionais tenham o potencial de criar suspeitas e curiosidade na comunidade, ela não deixa que isso influencie sua vida. Ela se encarrega de sua vida e não considera vergonhoso agir de maneira diferente. Ela se torna, de certa forma, libertadora de si mesma, não se limitando às expectativas da sociedade, dando-lhe a oportunidade de encontrar Jesus.” (Nelavala, 2007)E esse encontro com Jesus se dá a partir das realidades do cotidiano, as necessidades básicas, como um jarro de água no sol do meio dia. Jesus, corpo humano, sede que gruda a língua ao céu da boca, a secura nos lábios, pede água! Como Teresa Okure diz: “O realismo do cansaço físico de Jesus é ainda mais acentuado pela referência à hora do dia, meio-dia”. Entretanto, como compartilhar do mesmo jarro de água com alguém que historicamente é hostil ao seu povo? A Mishna[1] dizia que aquele que come pão dos samaritanos é como aquele que come carne dos suínos. O espanto é demonstrado quando a mulher samaritana questiona, talvez em tom inquiridor, “como você judeu me pede água?”
Jesus parece ter estado tão livre de qualquer necessidade de estado social, que resistiu a todos os intentos dos outros para lhe imporem um estado social. A preocupação de Jesus não estava sobre o que diriam dele se fizesse isso ou aquilo, e sim em assistir ao seu próximo com toda a atenção do mundo. Não queria se mostrar ou dar um grande espetáculo, mas antes, tratava a todos como seres únicos e não como “mais uma cura para a minha lista de milagres”, ou qualquer coisa do tipo. E essa é a característica mais marcante de sua liberdade: a extraordinária liberdade de estar livre para o seu próximo.
Para Maria Clara Bingemer:
“O Reino de Deus se manifesta ainda numa mulher samaritana que foi buscar água no poço de Jacó. O judeu que se encontrava sentado à beira do poço pediu-lhe de beber. Como aquilo quebrava todas as regras da sociedade em que viviam, — onde os judeus não falavam com os samaritanos nem os homens dirigiam a palavra em público às mulheres, — ela se surpreendeu e respondeu. Conversaram muito tempo. Ele lhe falou do dom de Deus, da água viva e dela mesma. Revelou-lhe sua verdadeira identidade e mostrou-lhe onde estava a verdade sobre si própria e sobre o Deus que judeus e samaritanos pretendiam, cada qual por sua vez, conhecer. Revelou-lhe seu nome e entregou-lhe nas mãos o segredo de uma nova vida.”
Mas vou além disso, acredito que a nova vida também foi dada a Jesus após o encontro com a mulher samaritana. O diálogo é sempre uma ação humanizante, quando Jesus e a mulher samaritana conversam, ambos se humanizam ao permitirem que o outro pisem no solo sagrado dos corações. Jesus fala do dom de Deus, de si, da água viva. A mulher fala do seu cotidiano, das suas lutas, das paixões. O encontro do Outro é sempre um encontro de Si. Jesus encontrou a si mesmo quando dialogou com a mulher samaritana, e ela encontrou a si mesma no diálogo com Jesus. Os jarros de água foram esvaziados e preenchidos com as águas de uma intimidade que se constrói a partir da escuta, da prosa, do cuidado.
Quando nos adentramos na profundeza de uma relação genuína não há o “doador” e o “receptor”, a única possibilidade é a troca! Ao dialogar com a mulher samaritana, Jesus não é o único doador, é também o receptor. Embora seja reconfortante pensar no “Jesus como emancipador das mulheres”, não podemos encarar esse texto como as lentes patriarcais da libertação. Jesus, ao dialogar com a mulher samaritana, se auto emancipou, se auto libertou! O caminho da libertação e do se passa pelo direito de decidir o que fazer com a nossa própria vida, mesmo que seja contrário aos padrões religiosos e culturais estabelecidos por uma elite dominante. Ao sentar e pedir água Jesus rompe as barreiras preconceituosas construídas dentro dele. E a mulher samaritana rompe as barreiras ao conversar com o tipo de pessoa que mais a menosprezava. Os dois rompem barreiras, os dois se libertam. Como diria Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens – as pessoas – se libertam em comunhão” (1987).
Referências
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. … E A MULHER ROMPEU O SILENCIO. Perspectiva Teológica, v. 18, n. 46, 1986.
DUBE, Musa“Reading for Decolonization (John 4:1-42)” in John and Postcolonialism: Travel, Space and Power (Reprint eds. Musa W. Dube and Jeffrey L. Staley; London: Sheffield Academic Press, 2002)
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
NELAVALA, Surekha. Jesus Asks the Samaritan Woman for a Drink: A Dalit Feminist Reading of John 4. Lectio Difficilior, v. 1, p. 1-25, 2007.
OKURE, Teresa The Johannine Approach to Mission: A Contextual Study of John 4.1-42 (Tuebingen: J.C.B. Mohr, 1988)
[1] Tradições orais